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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

É preciso não cantar, diria Nara Leão

A cantora Nara Leão em 1965 - Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional
A cantora Nara Leão em 1965 Imagem: Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Colunista do UOL

11/02/2021 11h53

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O que Nara Leão diria se estivesse por aqui?

Em 1968, poucos dias após a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, morto por um policial durante um protesto contra o aumento do preço da refeição e por melhores instalações sanitárias no restaurante Calabouço, uma espécie de bandejão subsidiado que atendia estudantes no centro do Rio, Nara publicou no jornal Última Hora um baita artigo. Reclamou das prioridades do governo do Estado da Guanabara, que dizia não poder concluir as obras no Calabouço porque tinha muitas despesas com o Carnaval. Naquela época, vale lembrar, havia Carnaval e as pessoas saíam às ruas com outro tipo de máscara. Nara também apontou o dedo para a miséria, a chacina de índios, a falta de hospitais, a censura nas artes cênicas, a estratégia dos militares de gastar fortunas com propaganda positiva e, indignada com o recente assassinato de Edson Luís, a violência do Estado contra a população. "É impossível cantar, sabendo que os estudantes estão sendo assassinados nas ruas", afirmou. E, logo adiante: "É preciso não cantar. (...) A realidade está demais para ser cantada e celebrada".

É preciso não cantar. O clamor de Nara, em meia-oito, avançava algumas casas em relação ao "é preciso cantar e alegrar a cidade", verso de Carlinhos Lyra e Vinícius de Morais que ela mesma gravara na primeira faixa de seu álbum de estreia, lançado em 1964, às vésperas do golpe militar.

Publicado na coluna que o amigo Nelson Motta mantinha no jornal do cunhado de Nara, Samuel Weiner, casado com sua irmã Danuza Leão, o artigo está parcialmente reproduzido na biografia Ninguém pode com Nara Leão (Editora Planeta), lançado nesta semana pelo jornalista e escritor Tom Cardoso. Com texto ágil e narrativa quase sempre cinematográfica, o autor coleciona episódios como cenas de um roteiro e os costura com elegância, convidando o leitor a acompanhar os movimentos da cantora como quem assiste ao filme de sua vida.

Na intimidade ou na esfera pública, Nara era muitas: A menina extremamente tímida de Copacabana, apelidada de Caramujo e de Jacarezinho do Pântano, conforme ela mesma contava no Show Opinião. A garota de joelhos redondinhos, sem arestas nem defeitos. A musa da Bossa Nova. A ativista, politizada e idealista, embrenhada nas lutas do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. A cantora sem papas na língua que se sentia à vontade para dizer o que devia e o que não devia quando entrevistada por algum jornalista. A pobre menina rica disposta a se engajar nos movimentos mais modernos da música, como a Tropicália, e se desvencilhar deles em seguida.

É provável que Nara Leão se revoltasse com a condução da "coisa pública" neste momento da política brasileira. Quantos milhões de reais em emendas para garantir a condução de um aliado para a presidência da Câmara enquanto faltam recursos para o auxílio emergencial, faltam vacinas, oxigênio e vergonha na cara. "É preciso não cantar", talvez fizesse ecoar, num artigo ou num post nas redes sociais. Bastaria um tuíte. Em fevereiro de 2021, estudantes estão sendo assassinados, mas não apenas eles, como também não eram apenas os estudantes que morriam em 1968. Os pretos, pobres e periféricos continuam a atrair as balas perdidas, as solas dos coturnos e os joelhos ingovernáveis de racistas fardados. Nações indígenas aniquiladas. O "povo da rua", conforme a alcunha adotada pela igreja católica pelas mãos de Júlio Lancellotti, cada vez mais vulnerável e perseguida. O desemprego galopante, a ausência de investimentos públicos para aquecer a economia, a escassez de concursos e editais, o congelamento das demarcações de terras indígenas e dos assentamentos rurais, a mentira, o assédio judicial, a perseguição política, as ameaças, as condenações sem provas, um herói desmascarado, um mito caído. É preciso não cantar.

Nara Leão talvez assistisse a tudo isso da janela de seu apartamento, sem acreditar. Sobretudo quanto à polarização política. Por certo ficaria estarrecida diante das manifestações em apoio a juiz, contra o impeachment do capitão ou pelo fim do auxílio emergencial. Já nas primeiras páginas do livro, Tom Cardoso nos transporta para 1967. Em viagem a São Paulo, hospedada no hotel Danúbio, na ainda charmosa e quase sofisticada Rua Brigadeiro Luís Antônio, Nara testemunhou uma cena improvável: "Parecia difícil de acreditar, mas era aquilo mesmo", diz o livro. "Artistas marchavam pelas ruas do centro de São Paulo gritando palavras de ordem contra o que representava no momento a maior ameaça à música brasileira. Os protestos eram direcionados à guitarra elétrica". Edu Lobo, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Elis Regina e Gilberto Gil estavam entre os que protestavam. De volta ao Rio, Nara contou ao namorado, o cineasta Cacá Diegues, o que vira da janela do quarto de hotel, ao lado de Caetano Veloso. "Já pensou organistas medievais fazendo passeata contra o piano?", comparou.

Ninguém podia com Nara Leão.