Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O Audálio Dantas que eu conheci (e que você precisa conhecer)
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Um dia ele me telefonou:
— Camilo, aqui é o Audálio Dantas.
Quase me engasguei com o café. Meio século mais novo que ele, me acostumara a ler seu nome nos livros de história e nas encíclicas do bom jornalismo. Audálio deveria estar nas prateleiras de casa, e não do outro lado da linha. Num canto do escritório, entre jornais e revistas antigas, eu guardava com deferência uma velha edição da Realidade com uma reportagem feita por ele e Maureen Bisilliat sobre os catadores de caranguejo de Recife. Em outro canto, na terceira prateleira, repousava um exemplar de As duas guerras de Vlado Herzog, vencedor do Prêmio Jabuti de não-ficção em 2013.
Leitor contumaz de memórias e romances sobre os que resistiram e os que tombaram pelas mãos da repressão fardada, reconhecia em Audálio o repórter perspicaz, o defensor dos direitos humanos e, principalmente, o sindicalista que denunciara o assassinato de Vladimir Herzog em outubro de 1975. Quarenta anos depois, em janeiro de 2016, era ele ao telefone.
— Oi, Audálio. Como vai?
Como se atende à ligação de um cânone, de um verbete de enciclopédia?
Havíamos nos conhecido dois anos antes, em meados de 2014, quando organizei com Eugênio Bucci um seminário sobre os 50 anos de profissão de outro verbete do jornalismo: Ricardo Kotscho. Audálio atendera ao convite para compor a mesa com Eliane Brum, Clóvis Rossi, Jorge Araújo, Hélio Campos Mello, Mariana Kotscho e o próprio Ricardo. Na ocasião, chegara com alguma antecedência e se aproximara de mim com passos miúdos, enorme em sua reduzida estatura: "eu sou Audálio Dantas". Logo ele, que jamais careceu de sobrenome, como Boaventura e Chimamanda. Desde aquele dia, eu o acompanhava apenas à distância, pelo pouco que ele se dispunha a publicar numa rede social - o que, em si, era algo extraordinário, tratando-se de um jornalista de 85 anos que convivera com linotipos, mimeógrafos e outras relíquias.
— Estou ligando para fazer uma sondagem, ainda extraoficial — ele explicou.
Nariz de cera é um jargão utilizado no jornalismo para se referir a longas introduções que antecedem a notícia principal. Nascido em 1929, no acanhado município de Tanque d'Arca, hoje com 6 mil habitantes, no agreste alagoano, Audálio ingressara na imprensa numa época em que o nariz de cera era regra, antes de ser escanteado em favor da síntese e da objetividade. Só sei que, naquele telefonema, o cânone recorreu ao nariz de cera para preparar o terreno. Falou-me da Comissão da Verdade, que o prefeito Fernando Haddad havia criado no ano anterior. Contou-me que um dos cinco membros havia se desligado e que era preciso substitui-lo. Alertou que faltavam apenas oito meses para o deadline, o prazo para a entrega do relatório final, e que praticamente nada havia sido escrito até então. Ainda deu detalhes sobre o local onde eram realizadas as reuniões, o regime de trabalho, a remuneração. E anunciou a escalação do time: Tereza Lajolo, Fermino Fechio, Adriano Diogo e ele. Por fim, o disparo:
— Você aceitaria integrar a Comissão?
Ainda bem que eu estava sentado naquele momento. Me esquivei o quanto pude da síndrome do impostor, tentei imaginar uma reunião de trabalho com aquele quarteto fantástico, não necessariamente fácil de lidar, no qual o mais jovem dos membros tinha o dobro da minha idade, conclui que minha missão seria sobretudo a de organizar o material de pesquisa já produzido e transformar num relatório, e, para ser sincero, entendi o convite como uma espécie de convocação - você já experimentou dizer não para um verbete de enciclopédia?
— Claro, Audálio. Um trabalho importantíssimo. Conte comigo.
No dia seguinte, quem me ligou foi Eduardo Suplicy, então secretário municipal de Direitos Humanos, reiterando o convite e explicando que faria a indicação ao prefeito. Em 11 de fevereiro de 2016, minha nomeação foi publicada no Diário Oficial.
Aquele telefonema de Audálio Dantas mudou minha vida. Pela primeira vez, desempenhei um trabalho profissional relacionado ao direito à memória, à verdade e à justiça de transição. Filho e sobrinho de presos políticos, conhecedor das violações de direitos praticadas pelos algozes de Vlado, de Alexandre Vannucchi Leme, de Ana Rosa Kucinski, de Stuart e Zuzu Angel, de Lamarca e Iara, Manoel Fiel Filho, Santo Dias e tantos outros, eu jamais havia atuado numa comissão como aquela, nem participado da elaboração de um relatório daquele tipo. Com exceção de alguns trabalhos pontuais na graduação e de uma única experiência, como autor dos verbetes sobre música publicados no portal Memórias da Ditadura por ocasião dos 50 anos do golpe civil-militar, o tema da ditadura ainda não havia assumido protagonismo na minha atuação como pesquisador ou jornalista.
Os dez meses que passei na Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo - solicitamos uma breve prorrogação e entregamos o relatório final em meados de dezembro - inauguraram uma avenida de outros trabalhos, debates, seminários e escritos na área, entre os quais incluo meu livro Vala de Perus, uma biografia, que foi publicado no ano passado e esteve entre os finalistas no Prêmio Jabuti deste ano. Desde aquele telefonema, a defesa da democracia, a denúncia das violências de Estado, o ativismo por memória e verdade seguem tatuados no meu corpo.
Audálio me descobriu. Que tipo de intuição o fizera acreditar que eu poderia ser útil para a Comissão, a despeito de nunca ter trabalhado com aquele tema? Havia nele algo de serendipitoso, qualidade de quem tem o condão de fazer descobertas felizes ou úteis ao acaso. Havia, sobretudo, o olhar do repórter, que vê e enxerga, "nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo".
Dei de pensar nisso nos últimos dias, tentando acompanhar, com alguma perplexidade e grande desconforto, uma recente polêmica que se instalou no mundo editorial e transbordou para a imprensa a cerca da relação construída no final dos anos 1950 entre o jornalista e a escritora Carolina Maria de Jesus, dois cânones, dois verbetes de enciclopédia.
Carolina Maria de Jesus ficou conhecida nacional e internacionalmente após a publicação de Quarto de Despejo, um livro seminal em que foram reunidos trechos dos diários que ela escrevia na favela do Canindé, em São Paulo, onde morava. Audálio a encontrou quando esteve naquela comunidade para fazer uma reportagem sobre a vida na favela para a Folha da Noite, um dos jornais do Grupo Folhas, que publica a Folha de S.Paulo. Deu de cara com Carolina, viu os cadernos que ela transformara em diários, soube que ela havia visitado diversos jornais para mostrar seus poemas em busca de algum editor que se dispusesse a lê-los e, quem sabe, publicá-los, e voltou para a redação decidido a não escrever nada: Carolina já havia escrito. Insistiu com o editor, mostrou os diários, e a reportagem saiu, com alguns dos escritos de Carolina e uma introdução feita por Audálio a fim de apresentar a autora e construir o ambiente. "O drama da favela escrito por uma favelada", dizia o título. A partir de então, Audálio voltou a publicar trechos dos diários de Carolina, agora na revista Cruzeiro, e, conforme anunciado ao pé da primeira matéria, dedicou-se a organizar um livro. O resultado foi Quarto de despejo, publicado em meados de 1960, que esgotou os 10 mil exemplares da primeira edição em apenas uma semana e incensou Carolina às páginas de revistas como Time, Life e Paris Mach. O livro foi traduzido em mais de uma dezena de idiomas e, merecidamente, abriu caminho para outros livros, como Casa de alvenaria, escrito quando Carolina Maria de Jesus havia trocado a favela por uma casa em Santana.
Desses paradoxos da vida, a justíssima valorização da obra de Carolina, ora homenageada com uma exposição no Instituto Moreira Salles e com a reedição de seus escritos, agora na forma de uma pretensa reunião de suas "obras completas", em mais de um volume, veio acompanhada, de acordo com a repercussão recente, por uma evitável invisibilização do papel de Audálio, no caso da exposição, e por sua transformação em vilão, no caso dos livros. Iluminada pela luz de LED dos editores e curadores de 2021, a história vivida por Audálio e Carolina há mais de sessenta anos, a partir dos diários escritos por ela à luz de vela ou querosene, entre 1955 e 1958, ameaça assumir a forma grotesca de censura, controle ou usurpação.
Culpam Audálio por ter editado os originais de Carolina ao encaminhá-los à editora, quando deveria, segundo os que apontam o dedo, insistir para que fossem publicados na íntegra, em quantos volumes fosse preciso, como se o mercado editorial, tão generoso e solícito, estivesse desde sempre com as portas abertas para uma autora negra, favela e desconhecida.
Culpam Audálio por, supostamente, não ter estimulado Carolina a produzir outros gêneros literários, como um romance, quando o interesse das editoras era essencialmente pelo testemunho pessoal da catadora de papel e sua jornada contra a miséria - e sem atentar para o fato de que, ele mesmo, na reportagem pioneira que deu origem a tudo, em maio de 1958, previra que os livros dela também conteriam contos.
Culpam Audálio por ser homem e branco - do tipo de branco que jamais seria considerado branco por um branco europeu ou norte-americano, como assinalado com veemência no filme Bacurau -, o que deve bastar para que lhe vistam as roupas do feitor, do senhor de engenho, disposto a se aproveitar de Carolina, necessariamente pura, e doce, e ingênua, e enganada, numa construção fundada em estereótipos que pouco ajuda a compreender a complexidade das personagens envolvidas e da beleza da história que ousaram construir.
Não vou me estender nesse tema porque Eliane Brum traduziu em palavras o que eu não saberia escrever melhor. E porque este texto não é sobre a polêmica, mas sobre Audálio.
Ao longo de 2016, convivemos intensamente na Comissão da Verdade. Quando a Prefeitura nos procurou para fazer um giro de palestras em cinco colégios, cinco CEUs localizados cada um numa das zonas da cidade, alguns a mais de uma hora de distância do nosso QG, Audálio foi o primeiro a se prontificar. Aos 86 anos, ele iria a pelo menos dois. Em dado momento, ainda no primeiro semestre, coube a mim escrever um artigo para a Folha de S.Paulo, que seria assinado pelos cinco membros. Audálio sugeriu duas pequenas mudanças e, relações públicas de mão cheia, encaminhou o arquivo para o jornal. O artigo foi prontamente aceito, com uma ressalva: não caberiam cinco nomes no campo destinado aos autores, seria preciso que dois nomes fossem transferidos ao rodapé. "Tira o meu", ele sugeriu. Ciente de que o nome de Audálio tinha sido o principal motivo para a pronta resposta do jornal, costurei a alternativa: Audálio Dantas, Tereza Lajolo, Adriano Diogo e outros, uma forma de prestigiar não somente ele, mas também a presidente da nossa comissão e aquele que havia presidido, até o ano anterior, a comissão estadual. Fermino e eu nos acomodamos confortavelmente no pé da página.
Muitas vezes, Audálio não aparecia nas reuniões semanais. Quando Rogério, secretário executivo da Comissão, nos informava que ele não viria, nós já sabíamos o motivo. A cada três ou quatro semanas, Audálio se submetia a um novo ciclo de quimioterapia, o que o obrigava a cancelar todos os compromissos. A medicação lhe atingia o estômago, o intestino, produzia tonturas e o deixava especialmente exausto. Ainda assim, ele não aceitava minhas sugestões para que ficasse um tempo sem ir. Como uma prévia do trabalho remoto que seria amplamente difundido quatro anos depois, em razão desse vírus maldito, eu me comprometia a encontrar uma forma para que ele participasse das reuniões por videoconferência, prometia levar o que houvesse de documentos até sua casa, mas ele preferia ir. E não se furtava a tomar o metrô quando surgia uma audiência na Praça João Mendes, tampouco a participar das diversas audiências públicas que a Comissão promoveu, por iniciativa do membro Adriano Diogo e, sobretudo, das assessoras Amelinha Teles e Vivian Mendes.
Após uma dessas audiências, fomos todos, incluindo Audálio, para um bar-restaurante que, àquela altura, ganhava fama na região central de São Paulo, o Al Janiah, de culinária e cultura palestinas, mais tarde transferido para um casarão no Bixiga. Ali, disputando com a música alta para ser ouvido, Audálio contou-nos histórias de Alagoas, discorreu sobre a vida de Graciliano Ramos, abocanhando de quando em quando um falafel e molhando os lábios num copinho de cachaça.
Estávamos juntos, na sala da Comissão, quando o impeachment da ex-presidente Dilma foi aprovado no Senado Federal. Deixamos a TV ligada. Lembrávamos do escárnio a que assistimos três meses antes, quando um deputado violento e histriônico homenageara um torturador ao encaminhar seu voto diante das câmeras, em plenário. Naquela ocasião, sentíamos o sabor amargo da inclinação autoritária e do extremismo de direita que desaguaria, dois anos mais tarde, na eleição do presidente da vergonha, uma consagração do ódio e da mentira que Audálio não chegaria a testemunhar. Naquela tarde de 31 de agosto, no entanto, em que o golpe de 2016 foi consumado, mantínhamos um olho na reunião e outro na televisão. Audálio, sentado à minha frente, me olhou com tristeza e indignação quando a contagem de votos revelou que o afastamento de Dilma seria inevitável. Seu olhar era também de cansaço e de aflição. Escrevi sobre isso em outro texto, publicado em 2018 no Observatório de Imprensa.
Não fazia nem trinta anos que o país trocara a Constituição do arbítrio por uma nova Constituição e estávamos mais uma vez na iminência de medidas de exceção. O golpe se sofisticara, mas ainda assim era um golpe, na percepção do meu amigo audaz. O que mais viria a acontecer? Discutíamos e relatávamos as violações de direitos de cinquenta anos antes enquanto novas violações de direitos eram exibidas ao vivo, pela TV. Eu pensava em Herzog, no jovem Audálio de cabelos encaracolados que não tinha nem 30 anos quando encontrou Carolina Maria de Jesus e que, aos quarenta e poucos, ousou mobilizar jornalistas do país inteiro para defender não apenas a segurança e a integridade dos colegas de profissão perante a violência de Estado - o que já seria incrível - mas também a liberdade de expressão, a vida, a democracia. Agora, aos 87, aquele homem não merecia ver novamente a democracia ameaçada. Ninguém merecia.
Nas últimas semanas de trabalho na Comissão da Verdade, ainda em 2016, passamos a nos encontrar no apartamento de Audálio, em Perdizes. Havíamos formado um subgrupo para tocar especificamente o relatório. Íamos para lá, toda semana, três membros - Audálio, Fermino e eu - e uma assessora, a Fernanda Nascimento. O Jabuti recebido anos antes pelo livro As duas guerras de Vlado Herzog nos olhava de um aparador. Da parede, quem nos observava era Baleia, a cadela de Fabiano em Vidas Secas, numa ilustração original de Aldemir Martins, preterida para a primeira edição da obra. E eu, aos 37 anos, aprendia a cada dia com ele, com todos eles, sobre ética, comprometimento, justiça e cidadania.
Na semana passada, fui provocado a indicar nomes para a edição deste ano do Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva, criado pela Prefeitura de São Paulo em resposta a uma recomendação feita por nós, os membros da Comissão, ainda em 2016. Passei longos minutos diante da tela, pensando que meu voto natural seria para Audálio, não por desagravo, para confrontar o injusto apagamento de que ele tem sido vítima, mas pelo conjunto da obra. Seria mais um entre os muitos prêmios com os quais Audálio foi reconhecido ao longo da vida, é verdade. Mas, ainda assim, oportuno. Ainda mais oportuno porque teríamos a chance de nos reencontrarmos na cerimônia de entrega. Possivelmente, chegaríamos vestidos praticamente com a mesma roupa, camisa de manga comprida aberta sobre camiseta, como aconteceu mais de uma vez - Juliana, filha de Audálio, é testemunha. E eu aproveitaria para aprender um pouco mais com ele, ciente de que nossa curta convivência, de pouco mais de dois anos, não foi suficiente, e de que a trajetória de Audálio ainda está por ser escrita.
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