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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não haverá justiça enquanto Assange e Delgatti forem vilões

Colunista do UOL

16/12/2021 02h25

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A biografia do Lula escrita por Fernando Morais acaba de completar um mês nas prateleiras - e no topo das listas de livros de não ficção mais vendidos no país. Nesses trinta dias, não houve noite de autógrafos em São Paulo nem no Rio ou em Brasília. Tampouco em São Bernardo do Campo (SP), Garanhuns (PE) ou Mariana (MG). O autor, ainda empenhado em distanciar-se dos outros depois de quase morrer de Covid-19, há cerca de um ano, abriu uma rara exceção na última segunda-feira (13). Na véspera, deixou a toca em Higienópolis, montou na Harley Davidson e riscou 270 quilômetros de asfalto para lançar o livro em Araraquara, uma das quatro cidades paulistas governadas pelo PT. Edinho Silva, o prefeito, esteve lá. O deputado federal e ex-ministro Alexandre Padilha, também. Mas, dividindo a mesa com o escritor, quem ocupava lugar de honra e atraía as atenções dos presentes era o jovem Walter Delgatti Neto, "o hacker de Araraquara". Apelidado de Vermelho em razão dos cabelos ruivos, Delgatti foi ao lançamento com uma calça jeans, uma camiseta polo preta e uma tornozeleira eletrônica amarrada à perna.

O encontro se deu na sede do Sindicato dos Bancários, local arranjado às pressas depois que a Universidade Estadual Paulista (Unesp) retirou o convite para que o livro fosse lançado no campus. Até a semana anterior, circulava um convite para o evento, a ser realizado no auditório da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp. Até agora, não se sabe ao certo de quem partiu o veto ao lançamento, um episódio que ainda carece de ser escarafunchado. "Na undécima hora, alguma 'autoridade acadêmica' se tomou de cagaço e proibiu o ato", comentou Fernando Morais numa rede social.

Mesmo assim, a noite foi intensa, com a venda de pouco mais de 200 exemplares. Os direitos autorais foram doados ao hacker, o que significa que o jovem estudante de Direito deve ter faturado algo entre R$ 1.500 e R$ 2 mil, dependendo do percentual pactuado entre autor e editora (normalmente na casa dos 10% do preço de capa). O valor simbólico do encontro, no entanto, foi muito maior. "O Brasil deve muito a Walter Delgatti", declarou o biógrafo. "Quero que o Brasil saiba da dívida que tem com esse garoto do interior de São Paulo."

Vermelho foi quem teve acesso à troca de mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e promotores do Ministério Público Federal do Paraná responsáveis pela acusação a Lula, como Deltan Dallagnol, e as encaminhou ao jornalista Glenn Greenwald, do Intercept Brasil, em meados de 2019. Semanas depois, tinha início a longa série de reportagens apelidada de Vaza Jato, publicada pelo Intercept em parceria com diversos veículos de jornais e revistas, que culminaria no reconhecimento da parcialidade de Moro ao julgar o caso do Triplex, na anulação das decisões da Lava Jato pelo Supremo Tribunal Federal e, por extensão, na revogação da prisão do ex-presidente Lula.

Num primeiro momento, no entanto, todas as armas foram apontadas para Delgatti. Era ele o réu, o criminoso, o hacker, o bandido. Vermelho foi preso em julho de 2019, acusado de interceptação telefônica, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha pela Operação Spoofing, aberta pela Polícia Federal quando Moro (ainda) era ministro da Justiça. Na ocasião, o ministro declarou que o vazamento havia sido obra de bandidos de alta periculosidade e patrocinada por altas quantias. Delgatti, que agiu sozinho, em seu quarto, com um único celular e um único computador, na casa modesta onde mora com a avó materna que o criou - ele fora abandonado pelos pais ainda criança -, passou um ano e três meses preso preventivamente até o habeas corpus ser concedido, em setembro do ano passado. Em fevereiro, voltou a ser preso, a pedido do Ministério Público Federal, numa lambança punitivista que buscava tapar o que ficava cada vez mais evidente: o vazamento e Delgatti havia mudado os rumos do País. Para melhor.

É significativo que Delgatti tenha estado ao lado de Fernando Morais no lançamento da biografia do Lula - que só está livre e só pode figurar como pré-candidato a presidente porque Vermelho obteve e divulgou a correspondência altamente comprometedora de Moro e seus asseclas - três dias após a justiça britânica ter aceitado um recurso do governo dos Estados Unidos e aprovado, num julgamento espetaculoso, a extradição de Julian Assange. Na América, o fundador do site WikiLeaks, cidadão australiano, será julgado de forma implacável pelos crimes de espionagem e de conspiração contra o governo norte-americano. Mudam-se os nomes e os artigos, mas cada nação tem sua Lei de Segurança Nacional, pronta para ser engatilhada contra a cabeça de seus próprios cidadãos. É provável que Assange seja condenado à pena capital.

Valendo-se de documentos sigilosos, vazados por terceiros, Julian Assange publicou uma série de matérias em 2010, denunciando crimes de guerra praticados pelos Estados Unidos, com ataques aéreos e mortes de civis (dolo presumido) no Afeganistão e no Iraque. Antes disso, em 2006, o WikiLeaks havia obtido algum destaque divulgando outros documentos comprometedores, que demonstravam execuções extrajudiciais no Quênia, problemas graves advindos do manejo de resíduos tóxicos na África e violações de direitos humanos nas Prisão de Guantânamo. "Assange cometeu o maior pecado do império", escreveu o jornalista Chris Hedges, vencedor do Prêmio Pulitzer. "Ele o expôs como uma empresa criminosa. Ele documentou suas mentiras, desrespeito cruel pela vida humana, corrupção desenfreada e inúmeros crimes de guerra. Republicano ou Democrata. Conservador ou Trabalhista. Trump ou Biden. Não importa. Os impérios sempre matam aqueles que lhes infligem ferimentos graves e profundos."

Guardadas as devidas proporções, há pouca diferença entre os vazamentos do Pentágono e os da Lava Jato quando o que está em risco é a democracia. Assange expôs os crimes do Estado norte-americano. Vermelho expôs os crimes do sistema de Justiça. Calá-los é uma forma de seguir praticando os mesmos crimes, o mesmo autoritarismo, o mesmo patrimonialismo. Não há soberania sem democracia. Diante dos abusos da Lava Jato, Delgatti chegou a afirmar que agira "em legítima defesa da sociedade". Não sem razão. Mas, no Brasil, sobretudo por meio das capas de revistas e dos canais de TV, há uma classe dominante que teima em transformar os criminosos em heróis. E a erguer ruidosas homenagens a Anhanguera, Borba Gato, Sérgio Moro e assemelhados.