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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A balbúrdia dos militares

Colunista do UOL

14/04/2022 00h05

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Que universidade, que nada. Bom mesmo deve ser curtir a vida adoidado nas Forças Armadas. Pensa numa turma que agita. Pé na areia, caipirinha, água de coco & cervejinha é coisa de amador. Festa de arromba, de gente grande, de major para cima, tem que ter churrasco do bom, uísque 12 anos, filé mignon e salmão - tudo superfaturado, é claro. Um avião da FAB com 39 quilos de cocaína, quem lembra? E comprimidos de Viagra a granel, aos montes, para quem quiser. Vale tudo. Só não vale dançar homem com homem. Infelizmente.

Oficiais das Forças Armadas não brincam em serviço: eles encerram o expediente antes de dar início à brincadeira. A organização da balbúrdia, no entanto, acontece em horário comercial, despudoradamente, em gabinetes e repartições. E deixa suas digitais nos pregões eletrônicos, como mostra denúncia recente apresentada pelo deputado federal Elias Vaz (PSB-GO).

Entre fevereiro de 2021 e fevereiro de 2022, os comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica compraram pelo menos 557 toneladas de filé mignon, 373 toneladas de picanha e 254 toneladas de salmão. Foram gastos R$ 56,4 milhões nesses três itens para atender as cúpulas das três armas, conforme apurou a equipe do parlamentar, com informações do portal da Transparência. Essas quantias e valores referem-se a processos de compra sem licitação e parecem indicar sobrepreço.

Em março, o Tribunal de Contas da União aprovou a abertura de investigação de outra denúncia, feita em fevereiro pelo mesmo deputado com outros nove colegas de bancada. Basta passar os olhos pela representação para perceber que o cardápio é coisa de profissional, de milico de alta patente. Foram compradas 714 toneladas de picanha ao custo de R$ 118,25 o quilo, é mole? E pouco mais de 80 mil latas e garrafas de cerveja, de diversas marcas, incluindo Heineken e Stella Artois, com preços turbinados. A latinha de Bohemia, por exemplo, foi cotada em R$ 4,33 num dos processos de compra, quando o preço para o consumidor final, no varejo, era R$ 3,00 na maioria dos mercados: um ágio presumido de 44%. Haja Engov.

As compras de 2020 incluíram ainda 140 toneladas de lombo de bacalhau, veja só, orçado em R$ 150 o quilo num dos processos, enquanto os mercados de qualquer capital cobravam menos de R$ 100 pelo quilo do mesmo produto. E garrafas de uísque escocês. Oito anos? Que nada! Só uísque 12 anos, Chivas ou Black.

Corta para 1976. Ainda sob Geisel, compras com dinheiro público de regalias consumidas nos palácios oficiais de Brasília foram tema de uma série de reportagens publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Era o escândalo das mordomias, assim batizado em referência à rubrica em que esses gastos eram lançados no Diário Oficial.

A história se repete em 2020, e justifica que os holofotes recaiam sobre os comandos das três armas. Sobre os comandos, note bem, porque todos sabemos que o salmão, o filé, a picanha, o uísque e a Stella Artois não vão reforçar o rancho servido nos quarteis. Aos cabos e soldados, a gororoba de sempre - e o gosto amargo de saber que, ao contrário do que lhes foi prometido em 2018, a mamata só aumentou.

A novidade desta semana fica por contar dos 35.320 comprimidos de Viagra comprados pelas mesmas Forças Armadas. Trinta-e-cinco-mil-trezentos-e-vinte... É Viagra à beça! Conforme noticiado, o Ministério da Defesa justificou a compra dos comprimidos de sildenafila, nome genérico das pílulas azuis, alegando que serão usados no tratamento de hipertensão arterial pulmonar (HAP), e não para driblar a disfunção erétil. Especialistas desconfiam da versão apresentada pelo Governo em razão da baixa incidência da doença, sobretudo entre os homens, e da dosagem dos medicamentos adquiridos, adequada para casos de impotência, mas não para o tratamento da HAP. De uma forma ou de outra, segundo parlamentares, o sobrepreço do medicamento pode ter chegado a 143%, o que torna sua aquisição ainda mais bizarra - e digna de investigação.

Não bastasse, o Ministério da Defesa também aprovou no ano passado a compra de 60 próteses penianas - infláveis, de silicone, medindo entre 10 a 25 centímetros - para três hospitais militares, ao custo total de R$ 3,5 milhões e preços unitários de R$ 50 mil a R$ 60 mil cada. Olha que coisa. O SUS tira leite de pedras, a atenção primária à saúde definha em diversas regiões do país - principalmente após a partida dos médicos cubanos -, falta gaze e analgésico num sem-número de unidades básicas de saúde, equipes de saúde da família se viram nos trinta para oferecer o mínimo de dignidade e esperança num país vitimado pela fome e pela desnutrição, e o Governo Federal, no auge da pandemia, sem ter feito uma simples campanha de divulgação do uso de máscaras ou do calendário de vacinação, acha justo distribuir próteses de R$ 50 mil para equipar os países baixos dos amigos e reabilitá-los ao campo de batalha.

Tudo isso parece piada, mas não é. Ou não deveria ser. Assim como também não é piada o carregamento de 39 quilos de cocaína transportado por um sargento da aeronáutica num avião da FAB apreendido no aeroporto de Sevilha, na Espanha, em 2019. Não é piada, mas deboche. Estão rindo da nossa cara, da minha e da sua. Banalizam as mordomias, promovem o acinte, protegem os seus, locupletam-se com privilégios enquanto debocham do país, das instituições, da desigualdade que nos marca profundamente. Transformam o Brasil numa grande balbúrdia, mas numa balbúrdia do mal, nas quais são mestres, e sabem que, se der merda, é só decretar sigilo de 100 anos e tocar pra frente. Simples assim.