Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Os muitos sucessos da casa abandonada e os paradoxos do (bom) jornalismo
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"A Mulher da Casa Abandonada" é um podcast produzido pela Folha de S.Paulo e conduzido pelo repórter Chico Felitti, autor de ótimos livros de não-ficção, entre os quais "Ricardo e Vânia", no qual contou a vida do "Fofão da Augusta", personagem mítico do underground paulistano, e "Elke: Mulher Maravilha", perfil biográfico da modelo e atriz Elke Maravilha, outro personagem excepcional.
Felitti tem o dom de se aventurar por mentes excêntricas e fascinantes. Não poderia ser diferente ao descobrir Margarida, a moradora de um casarão centenário de Higienópolis, que sai pouco, surge às vezes na janela e, quando o faz, aparece com o rosto totalmente coberto por uma camada de creme branco. Em seu novo trabalho, o que Chico Felitti nos revela é que o perfil de uma pessoa que foi investigada por um crime horrível, pouco mais de vinte anos atrás, quando morava nos Estados Unidos: o crime de manter uma funcionária como escrava. Seu marido foi condenado e cumpriu pena naquele país; ela se mandou para o Brasil, foragida.
Curiosidade e revolta são duas sensações que contribuem para o sucesso de "A Mulher da Casa Abandonada". Se você ainda não ouviu, corre lá e ouça. Se você não ouviu e não gostou, ou já não aguenta mais esse assunto, esta coluna é mais ou menos sobre isso.
Sucesso
Com que régua se mede o sucesso de uma série ou de um programa jornalístico? A audiência é, certamente, uma régua, embora não seja a única. A história da cultura é cheia de ótimos escritores que passaram despercebidos, de compositores que só ficaram conhecidos postumamente, e de pintores que morreram à míngua, sem conseguir pagar os boletos, e hoje têm suas obras arrematadas por milhões e expostas nos melhores museus do mundo. Tiveram êxito ao realizar um trabalho de excelência, quiçá revolucionário, como Van Gogh, mas não o êxito de cativar o público, pelo menos em vida.
Para o bem ou para o mal, é comum que haja certo descompasso entre sucesso de crítica e sucesso de público. De qualquer modo, o alcance de uma obra é, por definição, uma das formas de medir o sucesso de um programa, qualquer programa.
Não tenho ideia de quantas pessoas já ouviram a série "A Mulher da Casa Abandonada" desde a publicação do primeiro episódio, há cinquenta dias, mas foram muitas. A repercussão tem sido ainda maior do que a audiência - o que também conta como alcance. Inegável, portanto, o sucesso da série neste quesito. Mas olhar apenas para essa régua é desprezar as outras formas de sucesso também alcançadas pelo podcast, tão ou mais relevantes do que os índices de audiência.
Denúncias
A coisa mais importante que Chico Felitti conseguiu fazer com a série foi colocar um oportuno holofote sobre o tema do trabalho escravo contemporâneo, o trabalho forçado, que envolve restrições à liberdade, pagamento inexistente ou insuficiente e, quase sempre, condições degradantes, com jornadas excessivas e ambiente insalubre. Ora, mas precisava disso? Por que expor uma senhora psicologicamente desajustada aos humores das massas? O crime de que ela é acusada não prescreveu? Expor seu rosto, seu endereço, suas manias e excentricidades é fazer justiça?
Sim, o crime prescreveu, é verdade - se é que foi recepcionado pela justiça brasileira, algo que o podcast aborda da metade pra frente. Mas a memória persiste, e não é ruim que essa memória seja mantida. Recentemente, inclusive, o STF tratou do tema ao discutir o que juristas chamam de "direito ao esquecimento", um pedido frequente para, por exemplo, retirar notícias desabonadoras do ar, mas acabou decidindo que esse suposto direito é incompatível com a Constituição. No contrapelo, vemos o direito à memória e à verdade cada vez mais robusto - o que é ótimo.
Direito à Memória
A reivindicação pelo esquecimento, a pressão para "não mexer nesse vespeiro" ou sua prima, a acusação de "revanchismo", sob o argumento de que melhor seria "virar a página", não condizem com a necessidade que as democracias têm de conhecer o passado e aprender com ele. Vale para a política, para a economia e também para o sistema de Justiça, tanto no que tange aos crimes comuns quanto aos crimes trabalhistas e às violações de direitos humanos, sociais ou coletivos.
Livros, peças de teatro, reportagens, filmes, séries e podcasts contribuem para que se possa ler a página antes de virá-la. Há muitos disponíveis. Sobre Cabo Anselmo, Roger Abdelmassih, João de Deus e tantos outros criminosos. O ex-casal Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, assassinos da atriz Daniella Perez, morta a facadas trinta anos atrás, é exposto na série documental "Pacto Brutal", recém-lançado na HBOMax. O envolvimento de Suzane von Richthofen na execução dos próprios pais, há quase vinte anos, foi tema de dois filmes de ficção no ano passado, produzidos pela mesma equipe e com o mesmo elenco, praticamente idênticos, mas tratando de maneiras distintas a motivação da jovem, então com 18 anos.
O próprio conceito de revolver crimes antigos em novas investigações, seja para acrescentar detalhes ou novidades que não se sabiam, seja para dialogar com o legado que aquele episódio deixou para a sociedade ou a jurisprudência, está na base de um gênero muito festejado de podcasts, apelidado de "true crime". "Praia dos Ossos" é um desses. "Vala de Perus", que lancei em 2020, é outro.
O argumento de que não devemos mexer em casos antigos porque prescreveram ou porque os envolvidos já cumpriram pena não é historicamente nem sociologicamente justo. Deixemos de falar dos torturadores da ditadura, portanto? Reabilitemos Ustra, Fleury, todos eles? A partir de agora, ninguém mais fala sobre os crimes praticados por Hitler, Stálin, Mussolini? Ou o argumento só vale para quem está vivo? Suzane, Champinha, o goleiro Bruno, o casal Nardoni, Gil Rugai, Fernandinho Beira-Mar, Roger Abdelmassih, João de Deus, todos esses? Serve também para os crimes de colarinho branco e para os condenados ou foragidos por corrupção?
Trabalho escravo
Manter alguém em condições análogas à escravidão é crime no Brasil. Só em 2021, foram resgatadas 1.937 pessoas nesta condição, o maior número anual desde 2013, quando haviam sido resgatados 2.808 trabalhadores escravizados. Essas estatísticas têm sido essencialmente rurais. Quase sempre, são lavradores fora de seus estados de origem, "empregados" em grandes plantações de soja, cana ou café, ou empregados na abertura de pastos ou no manejo de gado bovino. O agro é pop. Mais raras são as fiscalizações urbanas, lideradas por oficinas têxteis de média escala, depósitos insalubres de bolivianos e bolivianas obrigados a dormir no chão, ao lado da máquina de costura, e a entregar uma quantidade absurda de peças de roupa, às vezes por R$ 1.
Resgatar trabalhadores domésticos é tarefa muito mais rara. Trancadas dentro de casa, em propriedades particulares, empregadas são mantidas em cárcere privada, sem salário, reproduzindo no bicentenário da independência o modelo escravista abolido oficialmente em 1888. Coisa angustiante saber que isso ainda existe.
A ausência de notícias, a invisibilidade da escravidão contemporânea, é aliada do crime. Ora, manter alguém dentro de casa, trabalhando, sem salário, quem vai desconfiar? Quando algum episódio excepcional fura a bolha e é denunciado, investigado em segredo de Justiça e, finalmente, é feita a condenação, a reação é de espanto. Foi assim em 2020, quando a libertação de Madalena, uma mulher negra de 46 anos resgatada em Patos de Minas (MG) após 38 anos de escravidão, repercutiu na imprensa durante semanas.
Agora, com "A Mulher da Casa Abandonada", o tema voltou à pauta, e trouxe com ele uma onda de empatia e solidariedade que já começa a render bons frutos. Segundo o Ministério Público do Trabalho, a média mensal de denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão passou de 7 para 16 após a estreia da série. Foram, ao todo, 59 denúncias desde o início do ano, 24 delas após o dia 8 de junho. Isso no país. Somente no estado de São Paulo, os números quadruplicaram: de 0,6 para 2,66 por mês. É este o segundo sucesso do podcast de Chico Felitti.
Exposição e circo
Ah, mas a mulher foi exposta, não pode mais andar na rua, tem um circo montado na porta de sua casa. Tudo isso é verdade. Eis o paradoxo do jornalismo, ou um deles. Publicar significa expor. Quantos políticos e empresários denunciados indevidamente na Lava Jato foram agredidos em aeroportos e restaurantes? Quantos não foram presos e tiveram sua credibilidade arranhada, por vezes destruída, antes que a Justiça reconhecesse o erro? Marisa Letícia morreu sem ver desmascarada a parcialidade do juiz que pediu sua condenação.
Violências praticadas no passado, pelas quais um criminoso jamais respondeu, não podem ensejar prisões ou outra forma de punição quando há prescrição, de fato. Mas esses criminosos estarão condenados para sempre pela memória de seus atos, sujeitos a eventuais escrachos e a podcasts como o de Felitti, sem que o jornalista possa ou deva ser responsabilizado por isso. Em nenhum momento do podcast há qualquer incentivo a revanchismos, escrachos ou atitudes similares. A mim, o autor pareceu sempre respeitoso e paciente com a história narrada e com sua protagonista, pedagógico em relação aos aspectos legais, atraindo sempre a atenção do ouvinte para a permanência da escravidão na atualidade.
O circo em frente à casa de Margarida de fato existiu. E sua existência diz muito mais sobre nossa sociedade, profundamente doente, extravasando um fetiche mórbido pela violência e pelo "andar de cima", do que sobre o trabalho de Chico Felitti. Em entrevista ao "Café da Manhã", outro podcast da Folha, o repórter contou que a polícia, antes de cumprir um mandado de busca e apreensão na casa abandonada, em meados de julho, enviou aviso de pauta para jornalistas de diversas redações. O resultado foi uma gradual e intensa espetacularização da notícia, tão comum nos telejornais, nas redes sociais e nos programas policialescos do fim de tarde, mas não observada no podcast.
Houve quem se indignasse com o fato de a autoridade policial ter forçado a entrada na casa ou tirado de Margarida seus três cães. Ora, o que preferiam, a negligência, a prevaricação? Animais vítimas de maus tratos, magros, um deles com um tumor. Uma casa com acúmulo de lixo, possivelmente sem fornecimento de água e esgoto, o que se verificou incorreto, e que há anos recebe a visita de uma única pessoa, possivelmente em situação de abandono, e que poderia estar com a estrutura física comprometida, essa casa não deve ser fiscalizada? Até desabar? Até que pragas se alastrem pela vizinhança?
Especulação imobiliária
Ah, mas isso só atende aos interesses do mercado imobiliário, à gentrificação. Esse argumento não procede. Primeiro, porque Margarida não é uma pessoa de baixa renda vítima da especulação imobiliária. Ela é herdeira desse e de outros sete imóveis, como revelaram outras reportagens. Segundo, porque ela não precisa vender a casa, nem a demolir para a construção de uma torre de alto luxo. Mas ela precisa, por lei, manter a casa limpa, segura, habitável.
Por fim, cravar que a velha mansão dará lugar a um condomínio tecnicamente não passa de suposição, e construtora nenhuma precisou que um podcast fosse feito para dar início ao assédio. As propostas se sucedem, são muitos os interessados em adquirir o terreno, e isso não vem de agora. Margarida resiste, não quer vender, diz que jamais sairá de lá. As irmãs, que também são herdeiras do imóvel, discordam. Numa das reportagens publicadas na esteira da série, ficamos sabendo que, no começo do ano, uma associação cultural ofereceu R$ 10 milhões pelo imóvel, e que a oferta teria sido aceita por todas, menos por Margarida.
Aos legalistas que nos lembram que o crime prescreveu, é oportuno lembrar que se trata de uma casa em péssimo estado de conservação sobre a qual não incide nenhum tipo de tombamento. Dificilmente ela resistirá por muito tempo, com ou sem podcast ou circo. Se for ocupada por uma associação cultural, tanto melhor. Terá sido o terceiro sucesso de Chico Felitti com sua reportagem.
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