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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que a hiena Hardy e Pollyanna discutiram sobre o segundo turno

A hiena Hardy, personagem pessimista da Hanna-Barbera criado nos anos 1960 - Divulgação
A hiena Hardy, personagem pessimista da Hanna-Barbera criado nos anos 1960 Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

06/10/2022 04h00

— Oh, vida. Oh, céus. Oh, azar.

A hiena Hardy, companheira do Leão Lippy no clássico desenho de Hanna-Barbera, parecia indignada com o resultado do primeiro turno. Pessimista, como sempre, deu de repetir as lamúrias habituais.

— Aqui estamos, na pior, mais uma vez. Oh, como sou desgraçado.

Sua frustração era compreensível. Por um momento, Hardy havia se deixado contagiar pelo entusiasmo do amigo Lippy, confiante numa vitória no primeiro turno. Não que a lufada de otimismo a tivesse resgatado da melancolia que lhe é característica. Não a ponto de plantar um sorriso em seu rosto.

Quem conhece a hiena há mais tempo, quiçá desde os anos 1960, sabe que esses arroubos não são do seu feitio. De qualquer maneira, o ânimo do leão, desde meados de setembro com camisa vermelha e boné do MST, fez com que a hiena trocasse por alguns dias a letargia pela esperança.

— Oh, azar. Eu sabia. Não vamos mais sair dessa, nunca mais.

Ouvindo aquilo à distância, enquanto se dirigia à casa do Sr. Pendlenton para uma visita de cortesia, Pollyanna se condoeu com a aflição da hiena e decidiu se aproximar.

— Oh, não diga isso, Hardy querido. A história, você sabe, às vezes prega algumas peças na gente, mas nada está liquidado. Olhe para tudo o que passamos. Pense em 2016, lembre-se de 2018. Curitiba, você se esqueceu? Quando poderíamos imaginar que uma reviravolta dessas seria possível e estaria tão perto de nossas mãos, ao alcance dos nossos dedos? Você deveria aprender o jogo do contente.

A hiena não esboçou reação. Olhou para aquela menina enxerida e caga-regras com o mesmo olhar cabisbaixo, macambúzia, e pôs-se a reclamar.

— Oh, céus. Que derrota, meu Deus.

— Derrota? Me desculpe, querida hiena, mas não houve derrota. Como você pode achar que uma chapa com 48,4% dos votos perdeu? São 6 milhões de votos na frente. Quando você imaginaria algo assim três ou quatro anos atrás?

— Oh, vida, mas e o Senado, e a Câmara, e os governos dos Estados?

— Nada muito diferente do que temos hoje! E com uma sensível melhora para o campo da oposição. O PT vai saltar de 56 para 68 deputados federais. O Psol, de 8 para 12. No Senado, o PT ficou com 6 cadeiras na eleição passada e agora terá 9, um aumento de 50%.

— Oh, azar. Mas foram eleitos o ex-juiz, o astronauta, a musa do veneno, o Mourão!

— Mas o Collor perdeu, o Eduardo Cunha perdeu, o Sérgio "Fundação Palmares" Camargo perdeu. Só em São Paulo, foram derrotados nomes como os de Joice Hasselmann, Coronel Telhada, Janaína Pascoal, Fernando Holiday e Nise Yamaguchi.

— Oh, céus, o MBL elegeu dois candidatos.

— O MST elegeu seis!

— Oh, vida, o ministro que queria passar a boiada teve quase três vezes mais votos que a Marina Silva em São Paulo.

— É verdade, mas ambos foram eleitos e, agora, terão direito a um voto cada um na Câmara. E, em São Paulo, a Sônia Guajajara também entrou. E ninguém recebeu tanto voto quanto o Boulos, o único a ultrapassar a casa de 1 milhão de eleitores no Estado.

— Oh, azar, o Zero Três foi eleito, que tristeza.

— Com menos da metade dos votos de 2018! Ao mesmo tempo, o Psol de São Paulo e o PDT de Minas Gerais elegeram as duas primeiras deputadas federais trans da história!

— Oh, céus. Mas para a Presidência, não me conformo. Como pode tanta gente votar numa pessoa tão insensível, desumana, despreparada? Que maldição, viver num país cruel e miserável, em que 51 milhões de eleitores escolhem o descaso, o deboche.

— Mas 57 milhões de eleitores escolheram a vida! Escolheram o respeito ao trabalhador, um projeto que valoriza a educação e a saúde pública, a informação vencendo as fake news, a cultura de paz superando o culto às armas, o incentivo às artes, a liberdade religiosa em substituição ao preconceito.

— Oh, azar. Vivemos rodeados por 51 milhões de brasileiros insensíveis à fome!

— E por 57 milhões comprometidos com o enfrentamento da fome, que entendem a gravidade do momento e que estão empenhados em recuperar a cidadania, em permitir que as pessoas voltem a ter direitos, empregos, reajuste salarial e a ingerir três refeições por dia.

— Oh, vida, agora todos os endinheirados vão se aliar do lado de lá para matar o nosso sonho e continuar tudo como está. Como se estivesse tudo bem, como se pudéssemos normalizar a dor, a miséria, a violência escancarada. Nem o PSDB e o PMDB declararam apoio.

— Mas o PDT declarou. Os principais candidatos da terceira via declararam. Simone Tebet, Ciro Gomes, e também Fernando Henrique Cardoso, ex-ministros influentes no centro político e junto ao mercado, como Armínio Fraga, José Serra e outros.

— Oh, céus, não vai ser fácil.

— Nunca foi fácil. Mas não me venha com esse clima de derrota. Você tem que jogar o jogo do contente. Sabe o que é melhor do que vencer o Bolsonaro? É derrotá-lo duas vezes seguidas, no mesmo mês. Agora muda essa cara e vamos à luta.

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