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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Um passo à frente e outro atrás, para onde vai a Igreja Católica?

Padre Julio Lancellotti inspirou projeto de lei que busca criminalizar a arquitetura hostil - Henrique de Campos
Padre Julio Lancellotti inspirou projeto de lei que busca criminalizar a arquitetura hostil Imagem: Henrique de Campos

Colunista do UOL

15/12/2022 10h55

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No início da semana, o cardeal Dom Odilo Scherer abriu espaço na agenda para ir ao Tucarena, um dos teatros da PUC, celebrar o aniversário de 50 anos da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. Salvo duas ou três discretíssimas exceções, a efeméride passou longe do noticiário, uma ausência compreensível diante da escassa atuação pública da referida comissão no último período e, não menos importante, da miúda audiência mobilizada pelo evento: não mais de 80 pessoas participaram do encontro.

Ainda assim, o desprezo à notícia por parte da imprensa denota desconhecimento histórico, em especial pelos jornalistas das novas gerações, e representa uma baita injustiça perante o papel desempenhado por esse aguerrido grupo de democratas constituído em 1972 sob a liderança do então arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns.

Sem a Comissão Justiça e Paz de São Paulo (CJP), o engajamento político de seu mentor e a dedicada atuação dos advogados nela reunidos, o espólio da ditadura militar seria outro. O número de mortos e desaparecidos perpetrado pelo DOI-Codi seria maior. Os maus-tratos nos presídios políticos seriam mais perversos e levariam mais tempo para cessar. As denúncias custariam a alcançar a imprensa internacional. As versões oficiais dos recorrentes assassinatos praticados pela repressão, como os de Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, e Vladimir Herzog, em 1975, manteriam o élan de verdade factual por mais tempo e para um grupo maior de cidadãos. Eventos de repercussão, como os atos ecumênicos na Sé e o Tribunal Tiradentes, provavelmente não existiriam.

Durante o encontro no Tucarena, algumas figuras históricas da CJP ocuparam o púlpito para compartilhar memórias e considerações, entre eles a cientista social Maria Victória Benevides, o membro-fundador Fábio Konder Comparato, o ex-presidente José Gregori e o atual, Antônio Funari Filho. "Dom Paulo fez da Cúria Metropolitana um centro de resistência à política de sequestros, assassínios e tortura de presos políticos", disse Comparato, referindo-se ao local onde a CJP foi instalada, o mesmo casarão da Avenida Higienópolis que é sede da Arquidiocese de São Paulo há quase 70 anos. "Na Comissão, ninguém provocava por provocar, nem buscava dar entrevista para aparecer, e isso fez com que ela fosse mais eficiente e mais dentro dos cânones cristãos que Dom Paulo imaginou para ela", completou Gregori.

Dom Odilo desculpou-se pelo atraso de meia hora e também falou. "A Comissão de São Paulo teve uma atuação importante, sobretudo durante o período mais difícil que o Brasil viveu, nos anos da ditadura militar, da repressão política, das prisões arbitrárias e das torturas", lembrou. "Porém, vemos que o papel da Comissão não está superado e nem pode ser diminuído neste nosso tempo, em que as mesmas mazelas continuam na sociedade."

Suspensão

É alvissareiro ouvir Dom Odilo mencionar a permanência de certos entulhos da ditadura e reconhecer a importância da CJP nos estertores de 2022. De perfil discreto, bem menos arrojado do que Dom Paulo e muito mais afeito ao gabinete do que às ruas, Dom Odilo pouco se envolve nas atividades da CJP e praticamente não se manifesta diante das sucessivas ameaças à democracia que o país vem absorvendo com assustadora resignação. Ao contrário, o cardeal costuma calar mais do que deveria. E tem trançado as pernas com mais frequência do que poderia.

Em 2017, os mais atentos devem se lembrar, Dom Odilo esteve ao lado de João Doria na apresentação da farinata, uma espécie de ração humana apresentada pelo então prefeito de São Paulo como solução para enfrentar a fome. O pote do granulado, feito com sobras de alimentos, havia sido adesivado com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, tal qual um rótulo comercial.

Seis meses depois, em abril de 2018, Dom Odilo repreendeu publicamente Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC), por ter conduzido um ato ecumênico em memória da amiga e ex-primeira-dama Marisa Letícia, em frente ao sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo. O evento antecedeu a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, condenado pelo ex-juiz Sérgio Moro, e ficou marcado pela contundência de um dos mais emocionantes discursos do agora presidente eleito, no qual Lula se comparou a uma "ideia". "Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês", disse. Dom Odilo não gostou. "O ato aconteceu fora da jurisdição e responsabilidade do arcebispo e da arquidiocese de São Paulo", destacou, em nota oficial da Arquidiocese. "O arcebispo de São Paulo lamenta a instrumentalização política do ato religioso."

Mais recentemente, o nome de Dom Odilo voltou a circular, agora envolto em relatos não muito precisos sobre uma suspensão aplicada por ele ao padre Ivanildo de Assis Tavares, da paróquia de São José Operário, na Vila Prudente, Zona Leste de São Paulo. Na versão da Arquidiocese, padre Assis, um homem negro nascido em Cabo Verde, teria celebrado um casamento coletivo em Franco da Rocha, no final de outubro, sem observar as regras do código canônico. Padre Assis foi afastado de suas funções em caráter excepcional. O padre alega que não houve matrimônio, mas uma bênção coletiva, oferecida a casais de diferentes religiões. Entre eles, havia pelo menos três em união homoafetiva, o que bastou para suscitar a acusação de homofobia. "A gente pode dar bênçãos em animais, em carros, casas, gatos e cachorros, mas não em casais homoafetivos", escreveu o ativista Benedito Barbosa, o Dito, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em desagravo publicado numa rede social.

Dom Odilo, por sua vez, diz que o problema foi outro. Em nota, o cardeal acusou o padre de praticar o que chamou de "simulação de sacramento", um delito canônico. "Não houve o devido encaminhamento da celebração das mencionadas uniões, nem foi feito antes, como prescrevem as normas eclesiásticas, o regular 'processo matrimonial' para a verificação das condições para a realização válida e lícita dos casamentos", escreveu. Ainda na visão da "nomenklatura" católica, é errado reduzir o evento a uma bênção, uma vez que coincidiu com o matrimônio civil: "As pessoas presentes desejavam se casar e não apenas receber uma bênção." Pressionado, Dom Odilo explicou que o afastamento é "cautelar", e não definitivo, e que o padre deverá reaver suas funções após "serem esclarecidos os fatos e as suas consequências e a depender da aceitação do sacerdote de observar as normas da Igreja".

Cautelar ou não, o afastamento bastou para que a congregação dos Missionários Espiritanos determinasse o regresso de Padre Assis a Cabo Verde, o que foi feito já no início da semana. A Comunidade de São José Operário, na Vila Prudente, protestou. "Somos testemunhas do quanto Padre Assis é fiel ao evangelho", diz um abaixo assinado com mais de 2.500 adesões. "O povo da Área Pastoral São José Operário, das favelas, vem por meio desta carta externar nosso pedido de que seja revista a decisão que penaliza não só o Padre Assis, mas todo o povo que caminha junto com ele entre os becos e vielas, buscando testemunhar que a perspectiva do Reino de Deus é espaço de Misericórdia e não de castigo e que abençoar pessoas é sinal do amor de Deus."

Como agiriam os membros da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo diante deste episódio? O que diria Dom Paulo Evaristo?

Aporofobia

No mesmo dia em que Padre Assis tomava o avião rumo a Lisboa, e dali para Cabo Verde, outro padre da Zona Leste paulistana empunhava uma marreta para afastar as pedras do caminho da justiça e da esperança. Em ação organizada pelo Observatório de Aporofobia (aversão aos pobres) com apoio da Pastoral do Povo de Rua, Padre Júlio Lancellotti, da paróquia São Miguel Arcanjo, da Moóca, somou-se a voluntários na manhã desta segunda-feira (12) para quebrar as pedras que haviam sido fixadas em frente à Biblioteca Cassiano Ricardo, no Tatuapé, com a finalidade de impedir pessoas em situação de rua de descansar ali. Tal prática tem sido chamada de "arquitetura hostil" por urbanistas.

Desde o ano passado, foram organizadas outras ações de remoção de pedras, instaladas em parques, praças e embaixo de viadutos. A Biblioteca Cassiano Ricardo é um equipamento de cultura municipal, mantido pela Prefeitura de São Paulo na Avenida Celso Garcia, o que fez reverberar a intensidade dos protestos. Em vez de cuidar dos cidadãos, tratá-los com respeito e oferecer alternativas que presem pela garantia de direitos fundamentais como à alimentação e à moradia digna, certas administrações municipais e estaduais têm optado pela arquitetura hostil, uma forma de violência de Estado. O que Dom Paulo diria?

Enquanto Padre Júlio e a "turma dos Direitos Humanos" protestavam no Tatuapé, Jair Bolsonaro recebia em sua mesa um projeto de lei elaborado com a finalidade de alterar o Estatuto da Cidade para proibir "o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis, que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população". Apelidada de Lei Júlio Lancellotti, a nova legislação foi aprovada simbolicamente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e aguardava apenas sanção presidencial para entrar em vigor.

Enquanto Padre Júlio quebrava pedras no Tatuapé, Padre Assis voltava para sua terra natal e Dom Odilo festejava os 50 anos da Comissão Justiça e Paz de São Paulo na PUC, a lei federal contra a arquitetura hostil e a aversão aos pobres foi vetada pelo presidente da República.

Até o fechamento desta coluna, a Arquidiocese de São Paulo ainda não havia se manifestado.

Coragem!