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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Família Bolsonaro inscreve um novo capítulo na agitada história do Alvorada

Michelle Bolsonaro se ajoelha e chora na despedida do Palácio da Alvorada - Reprodução/Twitter
Michelle Bolsonaro se ajoelha e chora na despedida do Palácio da Alvorada Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

22/12/2022 10h45

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Na última terça-feira (20), o casal presidencial alinhou-se para assistir à cerimônia de hasteamento da bandeira do Brasil em frente ao Palácio da Alvorada. Vencido nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva, Bolsonaro voltou a chorar. A seu lado, Michelle também chorou. Um vídeo que circulou nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp mostra a primeira-dama ajoelhada no chão enquanto apoiadores puxam um Pai-Nosso.

O entra-e-sai de caminhões de mudança virou rotina nos jardins do Alvorada. O primeiro foi flagrado na quinta-feira passada (15). Outro no sábado (17). O mundo gira e os inquilinos rodam.

Jair e Michelle têm até o dia 31 para deixar a residência oficial. Quem deve continuar por lá são as emas, únicas moradoras permanentes do palácio. Em julho de 2020, o presidente fez galhofa oferecendo caixas de cloroquina aos animais. Vivíamos o auge da pandemia do novo coronavírus e a foto do chiste, constrangedora, viralizou na internet e foi reproduzida inclusive na imprensa internacional.

Traço do arquiteto

O Palácio da Alvorada foi construído em quatorze meses e inaugurado em 30 de junho de 1958 por Juscelino Kubitschek. Precedeu em dois anos a inauguração de Brasília, em abril de 1960. Projetado pelo arquiteto carioca Oscar Niemeyer, preferido de JK desde a construção do conjunto arquitetônico da Pampulha, entre 1942 e 1944, quando era prefeito de Belo Horizonte, o Alvorada se tornou a mais moderna das residências oficiais de sua época, uma subversão estética diante da profusão de castelos e mansões de inspiração classicista. Ali, as colunas são leves, as mais leves já projetadas no país, e, de fora, parecem apenas tocar o espelho d'água, como se todo o palácio flutuasse.

"Vai fazer um ano e meio que desci aqui num campo de pouso provisório", lembrou JK no discurso de inauguração. "Nada havia ainda. A mão do homem não erguera construção, nem cultivara terra. Era o campo bruto, a solidão, os horizontes rasgados do Oeste. Aos pioneiros que deviam iniciar a ofensiva conquistadora cedeu o Exército barracas de campanha. Mas na primeira noite não foi possível a ninguém dormir. Uma onça rondava os pousos dos novos bandeirantes."

Foi Anna Maria Niemeyer, filha do arquiteto, quem desenhou a maioria dos móveis. Entre 1957 e 1958, enquanto os rabiscos do pai ganhavam materialidade à beira do Lago Paranoá, ela também selecionou quadros e tapetes, comprou a prataria e os talheres, as roupas de cama, mesa e banho, cuidou da iluminação, da disposição das esculturas, de cada sofá e cada poltrona, e até do piano de cauda alemão, que não foi doado por Tom Jobim, como dizem alguns, mas sim tocado por ele.

Meu palácio, minha vida

Embora a fachada e a volumetria do palácio tenham sido preservadas praticamente na totalidade, foram muitas as modificações feitas na decoração pelos homens e mulheres que vieram depois de JK e Sarah Kubitschek. Pesquisei essas alterações para escrever meu livro "Marisa Letícia Lula da Silva", de 2020.

Scila Médici, primeira-dama entre 1969 e 1974, achou a decoração modernista muito pobre e foi ao Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, buscar incrementos decorativos da época do Império, como pesadas cortinas de seda e móveis com detalhes dourados que subverteram o estilo bossa-nova conferido por Anna Maria Niemeyer.

Lucy Geisel providenciou para que sumissem com um dos mais tradicionais elementos decorativos do Alvorada: as emas. Segundo a esposa de Ernesto Geisel (1974-1979), as emas perturbavam sua dálmata Duquesa. Os animais foram transferidos para o Zoológico de Brasília e, semanas depois, Lucy foi surpreendida por uma cascavel na varanda. O jeito foi trazer de volta as emas, responsáveis por afastar cobras e escorpiões, e mandar a Duquesa para a Granja do Torto.

Durante o governo Figueiredo (1979-1985), deu-se uma divisão curiosa. João foi morar na residência oficial do Torto, enquanto sua esposa, Dulce, permaneceu no palácio. O casal estava em vias de separação quando o nome de Figueiredo foi escolhido pelas Forças Armadas para presidir o país, de modo que a primeira-dama teve carta branca para fazer o que quisesse no palácio. Dizem que ela pintou e bordou. Sua primeira atitude foi mandar tirar todos os tapetes e substituir todos por tapetes brancos. Em seguida, trouxe móveis estofados em cor de rosa, vasos com plumas, mesas espelhadas. Sarney e Marly (1985-1990) trataram de retirar os exageros da gestão anterior e trouxeram de volta os móveis modernistas.

Uma primeira reforma estrutural foi feita no governo Collor (1990-1992). Muito embora Fernando e Rosane não tenham morado no palácio, preferindo continuar na mansão em que já residiam em Brasília, a Casa da Dinda, o palácio continuou sendo usado para recepções oficiais. O casal, no entanto, considerava algo constrangedor receber apenas dois ou três comensais para almoçar e ter de conduzi-los ao salão de banquetes, onde a mesa, comprida e estreita, comporta até vinte convidados. Decidiram chamar o escritório de Oscar Niemeyer e encomendaram uma ousada adaptação. Em poucos meses, parte da grande cozinha do térreo (pavimento destinado às recepções, enquanto o segundo andar é privativo da família presidencial) foi convertida em sala de almoço. E, mesmo sem residir no local, cuidaram de meter um verniz branco nas portas dos armários dos quartos, originalmente em lambri de freijó, e substituir os puxadores originais por novos puxadores, de plástico transparente em forma de flor.

A socióloga Ruth Cardoso não gostava de perder tempo com essas coisas. Durante os oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), no entanto, propôs alterações nas telas expostas e quis incorporar alguns objetos etnográficos ao espaço. Trouxe três urnas funerárias marajoaras, por exemplo, para a entrada do mezanino. E firmou um contrato de comodato com o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, para trazer ao salão de banquetes uma enorme tapeçaria francesa de Jean Lurçat. Marisa, quando se mudou para lá, implicou justamente com esse tapete, que ocupava toda a parede principal e que lhe pareceu demasiadamente escura, sombria.

Claudio Rocha, diretor do departamento de documentação histórica, foi quem explicou a ela que aquela peça tinha vindo do Masp. "Então ela não é do palácio?", ela perguntou. "Não, foi trazida de São Paulo", ele contou. "E o que tinha aqui antes?", Marisa se interessou. Rocha mostrou a ela uma fotografia da parede com as peças originais, três tapeçarias verticais com motivos florais assinadas pela portuguesa Concessa Colaço, essas, sim, do acervo oficial da Presidência da República. "Cláudio, te dou uma semana para você colocá-las de volta e devolver essa coisa ao Masp", ordenou a primeira-dama.

Cultiva uma estrela

No segundo ano do governo Lula (2003-2010), Marisa foi pivô de uma enorme polêmica envolvendo o Alvorada. Na edição de 15 de abril de 2004, um jornal de Brasília estampou na primeira página uma fotografia aérea em que se podia ver um canteiro em forma de estrela no jardim do palácio. Segundo a matéria, a primeira-dama havia mandado carimbar o símbolo do PT num equipamento público tombado pelo patrimônio histórico. Foi um quiproquó. Não houve meios de se explicar e o canteiro, que ficava ao lado de outros em forma de sol e de lua, foi prontamente arrancado.

Quem ficou especialmente mexida com a situação foi Delzuíta Maria de Souza, a supervisora dos serviços de jardinagem. Tinha sido dela a iniciativa de fazer aqueles canteiros. Junto com Marisa, Delzuíta havia enchido de cores os jardins do Alvorada, antes cobertos por uma única espécie de flor, monocromática, que florescia apenas uma vez por ano e não carecia de replantio, apenas de poda. "A vida da gente precisa ser colorida", cobrava a primeira-dama. Em dezembro de 2003, Delzuíta aproveitou uma viagem oficial do casal presidencial para o Oriente Médio, chamou um dos jardineiros e mandou fazer a estrela, primeiro com zínia, depois com sálvia vermelha.

Quando voltou de viagem, Marisa teve o instinto de mandar arrancar tudo aquilo, com medo de causar confusão. Mas ficou com o coração mole, comovida com a iniciativa dos empregados, e arriscou deixar. Deu no que deu. Legalmente, não havia nenhuma infração naquele canteiro, uma vez que a parte detrás do palácio não é tombado, tampouco as áreas ocupadas com pomar e outras vegetações. Moralmente, no entanto, o gesto justificava a polêmica. A estrela foi desfeita.

Reforma e restauração

Ainda no governo Lula, foram instaladas as traves que improvisaram um campo de futebol pouco abaixo da piscina e também as banquetas que, pela primeira vez, permitiriam aos moradores passear pelo jardim e se deter por algum tempo à sombra das árvores.

Pouco depois do episódio da estrela, Marisa mergulhou num profundo e ousado processo de recuperação do Palácio da Alvorada, convencida a devolver a ele a ambientação original de Anna Maria Niemeyer. Conversando com Cláudio Rocha, descobriu que muitos objetos do palácio, sobretudo esculturas, tinham sido cedidos para outros prédios públicos, principalmente ministérios. Mandou trazer tudo de volta. Restaurou móveis e resgatou as cores originais dos armários e estofados, entre eles os das cadeiras da sala de banquetes, que recuperaram o azul original. Também restaurou a capela. As mudanças foram acompanhadas por reformas, principalmente nos sistemas hidráulico e elétrico, que em quase cinquenta anos não haviam sido renovados. Em alguns ambientes, havia quatro ou cinco carpetes, aplicados um em cima do outro. Às vezes, Lula e Marisa tomavam choque ao andar descalços pelo quarto: culpa de fios desencapados que jaziam sob a espessa camada de carpetes.

Quando assumiu a Presidência, Dilma Rousseff (2011-2016) encontrou o palácio restaurado e livre das descaracterizações feitas ao longo de cinco décadas. Separada e com a filha já adulta, morou sozinha por quase seis anos. Depois de afastada, diria em entrevistas que entrou na piscina apenas duas vezes e que costumava circular em apenas parte do primeiro andar, uma espécie de apartamento com quarto, banheiro, cozinha e escritório dentro do palácio. Quem gostava de lá, segundo Dilma, era o neto Gabriel.

Os fantasmas contra-atacam

Michel Temer, o sucessor (2016-2018), chegou a se instalar no Alvorada com a esposa Marcela, depois que ela instalou telas nas janelas do primeiro andar - uma proteção para o filho Michelzinho, a primeira criança a habitar o palácio desde os anos 1960 - e mandar arrancar alguns objetos decorativos, inclusive o tapete vermelho, que precisou ser recolocado em seguida porque, esse sim, está protegido pelo patrimônio histórico. Publicamente, Temer justificou a volta ao Palácio Jaburu, residência oficial do vice-presidente, dizendo que o Alvorada era grande demais e não tinha jeito de casa. Ao mesmo tempo, deu declarações, umas em tom sério e outras como brincadeira, afirmando que fantasmas rondavam o palácio e não o deixavam dormir. Se ele se referia a funcionários fantasmas, nunca se soube.

Mais recentemente, a primeira-dama Michelle Bolsonaro (2019-2022) também recorreu ao mundo sobrenatural para se referir ao palácio. Afirmou, durante um culto, que aquele endereço havia sido "consagrado a demônios" em anos anteriores. A oposição caiu matando, associando a declaração ao próprio presidente. "Se tem alguém possuído pelo demônio, é Bolsonaro", Lula chegou a declarar, no início da campanha eleitoral.

Os caminhões de mudança já retiraram do palácio boa parte das obras de arte do casal Bolsonaro: estátuas e telas de gosto duvidoso que retratam o presidente em exercício, ora com a esposa, ora com crianças, ora em traje militar. Após a divulgação do vídeo do choro no Alvorada, apoiadores sugeriram que o presidente e a esposa permanecessem no local, numa atitude de desobediência civil, evitando a todo custo a chegada de Lula e Janja. O limite para a saída é o dia 31 de dezembro. Entre a entrega das chaves e a chegada do novo casal, o palácio passará por um pente-fino, encomendado por Lula. A equipe de segurança buscará detectar a presença de equipamentos de escuta, por exemplo, procedimento que será replicado também no Palácio do Planalto.