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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Viva Arlindo Cruz!

Arlindo Cruz foi destaque em carro alegórico da Império Serrano, escola para a qual compôs mais de uma dezena de sambas-enredo e que o homenageou no desfile de 2023 - AgNews
Arlindo Cruz foi destaque em carro alegórico da Império Serrano, escola para a qual compôs mais de uma dezena de sambas-enredo e que o homenageou no desfile de 2023 Imagem: AgNews

Colunista do UOL

23/02/2023 04h00

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O poeta está vivo. Linda a homenagem da escola de samba Império Serrano a esse grande compositor. Arlindo Cruz já não pode pisar na avenida, já não frequenta as rodas de Madureira nem a tamarineira do Cacique de Ramos, já não toca seu banjo com braço de cavaquinho pelos palcos do país nem escreve os versos incríveis que inscreveram seu nome na história da música popular brasileira. Não obstante, Arlindo Cruz está vivo.

Arlindo observa. Arlindo se emociona. Desta vez, entrou na Sapucaí numa cadeira de rodas. Acompanhado pela família e cercado de cuidados, com uma equipe médica a seu lado durante todo o desfile, Arlindo ocupou o único lugar que lhe cabia naquela noite: o trono. Um machado de Xangô nas mãos. Oxé e Axé.

Dono de uma trajetória musical inspiradora, que passa pelo grupo Fundo de Quintal, onde cantou por 12 anos após a saída de Jorge Aragão, por cinco indicações ao Grammy e pela composição de 11 sambas-enredo selecionados pela Império e outros sete para outras escolas, como a Grande Rio e a Vila Isabel, Arlindo sofreu um AVC em 2017. Hoje, segundo seu filho Arlindinho, eventualmente sorri, pisca ou dá um beijinho. É sua forma de interagir. Não obstante, Arlindo está vivo.

Nas redes sociais, houve quem protestasse. Que absurdo submeter uma pessoa com sua condição à exposição pública, diziam. Quanta maldade obrigar Arlindo a sacolejar por mais de uma hora num carro alegórico, com tanto barulho e aglomeração, quando poderia ter ficado no ambiente seguro e confortável de sua casa.

Esses comentários, essencialmente capacitistas, dizem mais sobre quem os perpetrou. Como se a uma pessoa a quem um acidente vascular cerebral impôs limitações motoras e de comunicação restasse a clausura do quarto. Como se essa pessoa devesse ser escondida ou como se a presença incondicional de um médico e uma equipe de enfermagem não autorizasse Arlindo a receber tão linda homenagem. "Olha nós outra vez no ar / o show tem que continuar", diz um dos sambas mais reproduzidos da lavra do artista. "Quando eu não puder pisar mais na avenida / Quando as minhas pernas não puderem aguentar / Levar meu corpo junto com meu samba / O meu anel de bamba / Entrego a quem mereça usar", canta a amiga Alcione.

Arlindo Cruz é hoje uma pessoa com deficiência, uma pessoa com mobilidade reduzida. Não obstante, Arlindo está vivo. E quem não entender, é bom ficar esperto. Camarão que dorme, a onda leva.

Nesta semana, meu filho de 11 anos passou por mim cantarolando o samba "Meu Lugar". De tanto me ouvir escutando essa música, no carro ou na cozinha, ou enquanto batuco artigos e colunas no teclado do computador, meu filho teve curiosidade de ir atrás e baixou a música no Spotify. Até ontem, ele não sabia quem é Arlindo Cruz. O que ele sabia é que o cara é bom, e que há tanta verdade naquela letra, tanto carinho naqueles acordes.

No Carnaval, enviei os originais do meu próximo livro para a editora. Ainda pode mudar, mas uma estrofe do Arlindo está lá, como epígrafe, logo nas primeiras páginas, com luta, suor, esperança num mundo melhor e cerveja pra comemorar. Hoje é dia de Arlindo comemorar. E de comemorar Arlindo.