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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Governo corta água do São Francisco, 'seca' rio e afeta moradores e peixes

Rio São Francisco entre Piranhas (AL) e Canindé do São Francisco (SE) na tarde do domingo  - Digo Denisval dos Santos/Arquivo pessoal
Rio São Francisco entre Piranhas (AL) e Canindé do São Francisco (SE) na tarde do domingo Imagem: Digo Denisval dos Santos/Arquivo pessoal

Colunista do UOL

21/08/2022 04h00

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Na manhã da última segunda-feira (15), o pescador José Rodrigo dos Santos foi até o porto de Neópolis (SE) pegar seu barco e tomou um susto: o rio São Francisco, de onde tira seu sustento, tinha baixado mais de um metro em apenas um dia e sua embarcação, que havia ficado boiando no dia anterior, estava em área seca, distante das águas do rio.

O cenário de inconstância de vazões, com o rio seco e cheio em períodos curtos, tem sido uma rotina na região do Baixo São Francisco —como é chamada a parte final do rio, entre Alagoas e Sergipe.

A vazão do rio no local é controlada pela Hidrelétrica de Xingó, da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), que regula as comportas para saída da água, atendendo à demanda do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico).

Procurado pela coluna, o ONS disse que a redução é um "cuidado" necessário (leia mais ao final do texto).

No domingo em que o barco de José Rodrigo "atolou", segundo a ANA (Agência Nacional das Águas), a vazão média diária de Xingó caiu de 2.248 m³/s, no dia 12; para 1.087 m³/s, no domingo 14.

Especialistas afirmam que variações intensas assim prejudicam fauna e flora, além de afetar atividades econômicas —como a pesca e a navegação. Também dificultam a captação de água para abastecimento humano ou rural de comunidades que moram na região ribeirinha.

"Quando a vazão baixa, a gente tem muita dificuldade para colocar os equipamentos de pesca e fica difícil de trafegar no rio. Sem contar que colocamos a embarcação em um local, e no outro dia está em outro. A gente tem que arrastar o barco. Isso vem danificando nossas embarcações", diz José Rodrigo.

Durante a semana, a coluna recebeu fotos e vídeos de peixes mortos e de marcas que indicam reduções bruscas da vazão dos rios, que criam pequenos lagos em regiões que antes eram rio.

Variação na prática bem maior

Além de baixa, a vazão média operada naquele domingo (assim como vários outros dias) não é constante. No mesmo dia, sofreu diversas variações e chegou a 677 m³/s às 14h. Porém, às 21h do dia anterior, foi quase três vezes maior: 1.621 m³/s.

Os dados são coletados pelo pesquisador Carlos Ribeiro Júnior, do Info São Francisco. "O valor da vazão no domingo foi no padrão da situação que o Baixo São Francisco enfrentou a partir de 2013 [período de severa seca] com as reduções de vazão permitidas pelo Ibama através das Autorizações Especiais", diz.

A coluna também teve acesso aos dados de junho e julho, que mostram uma frequência dessa situação de cheia e seca do rio, com vazão inferior a 700 m³/s em muitos momentos.

"Essas oscilações abruptas são absurdas. A gente reclama delas porque causam muitos problemas", explica Emerson Soares, professor da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e pesquisador convidado da sala de situação que define, mensalmente, as cotas de saída da água.

É ele que define a quantidade de água que deve ser liberada de Xingó, entre Piranhas (AL) e Canindé do São Francisco (SE), para o Baixo São Francisco.

Segundo Soares, a vazão fica em muitos momentos abaixo do que determina a resolução 2.081/2017, da ANA (Agência Nacional das Águas), de 1.100m³/s, causando uma verdadeira seca no rio. "Essas alterações repentinas têm causado a morte de peixes, além de afetado os manguezais e a vegetação ciliar", diz.

Segundo apurou a coluna nos dados da ANA, em ao menos 25 dias a cota não atingiu esse limite mínimo, chegando a 797 m³/s em 9 de janeiro.

Hidrelétrica de Xingó, que controla vazão para o Baixo São Francisco - Emerson Soares/Arquivo pessoal - Emerson Soares/Arquivo pessoal
Hidrelétrica de Xingó, que controla vazão para o Baixo São Francisco
Imagem: Emerson Soares/Arquivo pessoal

Sem seca, vazão deveria estar alta

Emerson Soares afirma que, como a região não sofreu com seca recente, os reservatórios das hidrelétricas estão cheios e não haveria necessidade de mudanças bruscas.

"Esse estresse hídrico está prejudicando a região, e eles não têm nenhuma sensibilidade com a população ribeirinha, não escutam a ciência e são hegemônicos. Os avisos, muitas vezes, acontecem no mesmo dia em que já foi feita a alteração", diz Soares.

Peixes mortos em Piranhas (AL) após queda abrupta de vazão   - Reprodução - Reprodução
Peixes mortos em Piranhas (AL) após queda abrupta de vazão
Imagem: Reprodução

Por conta disso, um grupo de pesquisadores e pessoas afetadas escreveu uma carta aberta endereçada ao MPF (Ministério Público Federal) para que sejam tomadas providências para frear as mudanças de vazão.

"As consequências das alterações abruptas de vazão do rio São Francisco para os manguezais localizados na foz podem ser devastadoras, visto que toda a biota [conjunto dos seres vivos] dos ambientes estuarinos está adaptada a alterações periódicas e constantes da maré", dizem.

Outro ponto de reclamação é que as vazões menores dificultam a diluição de agrotóxicos e do esgoto para o rio.

A vazão pode influenciar na acumulação dos pesticidas que persistem no meio, como também ocasionar a elevação secundária na exposição aquosa desses contaminantes, podendo gerar níveis agudamente tóxicos para a fauna aquática, tornando-se necessárias grandes medidas em favor do meio ambiente e da saúde humana.
Trecho de carta aberta enviada ao MPF

Situação atual dos reservatórios:

  • Itaparica: 98,39%
  • Sobradinho: 76,5%
  • Três Marias: 73,45%

Fonte: ONS

Segundo o ONS, os reservatórios de hidrelétricas do rio São Francisco respondem por 97% de toda a energia armazenada do sistema no Nordeste.

Reservatório de Sobradinho (BA) atingiu 100% de armazenamento em abril, após 13 anos - Chesf - Chesf
Reservatório de Sobradinho (BA) atingiu 100% de armazenamento em abril de 2022, após 13 anos
Imagem: Chesf

A situação tem sido acompanhada com preocupação pelo CBHSF (Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco), que vai cobrar do ONS o fim das mudanças bruscas.

"Nossa maior preocupação é com as reduções e o aumento drástico de vazões", afirma Maciel Oliveira, presidente do comitê que tem como missão fazer a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia.

Ele diz que o órgão vai cobrar do ONS mudança no planejamento para que não haja reduções ou aumentos maiores que 300 m³/s.

Os municípios mais afetados, diz, são aqueles mais próximos à hidrelétrica de Xingó. "Hoje, uma hora o rio está seco, outra hora o rio está cheio; não tem espécies nativas que aguentem uma situação abrupta dessas. As espécies mais juvenis, por exemplo, estão morrendo em locais marginais, pois não conseguem nadar com as rápidas diminuições", afirma.

Tem dias que eles aumentam ou reduzem mais de 500 m³/s, e isso traz diversos prejuízos ambientais para o ecossistema aquático ao pessoal da navegação e aos pescadores em todo curso do Baixo São Francisco."
Maciel Oliveira, do comitê sobre a bacia

Margem assoreada do rio São Francisco, em Alagoas - Emerson Soares/Acervo pessoal - Emerson Soares/Acervo pessoal
Margem assoreada do rio São Francisco, em Alagoas
Imagem: Emerson Soares/Acervo pessoal

ONS diz se tratar de 'cuidado'

Em nota, o ONS diz que "é sensível às necessidades da população" e que "segue todos os requisitos legais relacionados aos usos múltiplos das águas e ambientais vigentes", estabelecidos em regulamentações.

"Para esta usina, com o objetivo de reduzir oscilações de aumento do fluxo de água, visando minimizar impacto nas margens do rio, são consideradas taxas máximas de variação diária e horária", diz, sem citar valores.

Ainda segundo o operador, "diante deste cenário, o ONS costuma calibrar o uso dos recursos energéticos existentes de maneira a manter o equilíbrio do Sistema Interligado Nacional (SIN) e usar de forma otimizada a energia gerada".

O ONS ainda diz que a prática não é adotada "apenas neste empreendimento, mas é um cuidado que é tomado independentemente da fonte usada".

Já a ANA se limitou a dizer que as variações de vazão estão de acordo com a resolução da agência e não fez qualquer menção às mudanças abruptas de valores.

A Chesf não respondeu aos questionamentos feitos pela coluna.