Topo

Carlos Madeiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Governo rescinde convênio e trava canal que leva água do São Francisco a AL

Canal do Sertão cortando rodovia em Delmiro Gouveia (AL): 123,5 km feitos e 126,5 km a fazer - Divulgação/Associação dos Municípios de Alagoas
Canal do Sertão cortando rodovia em Delmiro Gouveia (AL): 123,5 km feitos e 126,5 km a fazer Imagem: Divulgação/Associação dos Municípios de Alagoas

Colunista do UOL

29/10/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O governo federal decidiu revogar o convênio com o estado de Alagoas e parou de financiar uma das maiores e importantes obras hídricas do Nordeste: o Canal do Sertão Alagoano, que é uma pequena transposição do rio São Francisco para atender os sertanejos do estado.

A obra, que custou até aqui R$ 2,3 bilhões dos cofres federais, tem 123,5 km dos 250 km previstos já prontos e em funcionamento, com quatro trechos concluídos.

A inauguração do último deles ocorreu em 13 de maio de 2021 e contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro (PL) em São José da Tapera. Com a fase 4 entregue, 189 mil habitantes do sertão alagoano já foram beneficiados com o canal, segundo o estado.

Porém, menos de dois meses após a vinda de Bolsonaro, no dia 7 de julho, o governo federal decidiu rescindir o convênio, alegando que o estado não cumpriu exigências para receber recursos para o trecho 5 da obra.

O impasse entre os governos estadual e federal adiou o início do novo trecho de 26,5 km e que atenderá 239 mil pessoas. A obra deveria ter começado no primeiro semestre deste ano.

13.mai.2021 - Arthur Lira, Bolsonaro e Fernando Collor durante abertura das comportas de trecho 4 do Canal do Sertão, em São José da Tapera (AL) - Alan Santos/Presidência da República  - Alan Santos/Presidência da República
13.mai.2021 - Arthur Lira, Bolsonaro e Fernando Collor durante abertura das comportas de trecho 4 do Canal do Sertão, em São José da Tapera (AL)
Imagem: Alan Santos/Presidência da República

O MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) informou à coluna que só poderá assinar novo convênio para financiar a obra se o estado cumprir exigências, em especial um plano de viabilidade —que o estado afirma já existir desde 2003 e não ser responsabilidade dele.

O governo estadual entende as cobranças como uma manobra burocrática com interesse político para abandonar a obra mais importante do estado e que garante água para abastecimento humano e irrigação no semiárido alagoano.

Impasse e narrativas diferentes

A pasta informou ao UOL que, desde o ano passado, "tem notificado o governo do estado de Alagoas para que responda às diversas contestações apresentadas pelo Tribunal de Contas da União, em relação à realização das obras do trecho 5 do Canal do Sertão Alagoano".

Segundo o MDR, o TCU contesta processos de licitação realizados para a execução do novo trecho.

"O MDR solicitou ao governo estadual estudos de viabilidade técnica que demonstrassem a funcionalidade, integridade e viabilidade da obra. As informações foram solicitadas para identificar a necessidade da construção da etapa 5 e justificar novos investimentos do governo federal. Desde então, não houve, por parte do governo de Alagoas, respostas relacionadas aos questionamentos feitos", afirmou.

Ainda na nota, o MDR diz que, para que seja firmado convênio para a etapa 5, "faz-se necessário que o governo do estado de Alagoas responda aos questionamentos enviados pelo Tribunal de Contas da União e pelo Ministério do Desenvolvimento Regional".

O MDR diz ainda que, em 2020, investiu mais de R$ 200 milhões —número que o estado contesta— na conclusão do trecho 4 do Canal do Sertão. "O governo federal não permitiu que houvesse qualquer interrupção no cronograma físico-financeiro da obra, que hoje permite que mais de 113 mil alagoanos tenham possibilidade de acesso a água de qualidade."

Segundo o governo do estado, porém, todas as respostas foram dadas e não haveria motivo para que a obra não prosseguisse.

A rescisão do contrato firmado com o governo federal em 2010 ocorreu de forma unilateral no dia 7 de julho de 2021. Com isso, o trecho 5 —que iria até o km 150 para beneficiar mais 239 mil pessoas de 19 municípios— não andou.

O governo do estado diz que, diante da negativa do MDR em aceitar suas respostas e firmar convênio, decidiu tocar a obra com caixa estadual.

Em junho, o governador Paulo Dantas (MDB) assinou a ordem de serviço para início das obras com recursos próprios.

Obra do Canal do Sertão Alagoano já cortam 123,5 km do estado - Seinfra Alagoas/Divulgação - Seinfra Alagoas/Divulgação
Obras do Canal do Sertão Alagoano já cortam 123,5 km do estado
Imagem: Seinfra Alagoas/Divulgação

Cumprimento de exigências contestado

O UOL teve acesso à troca de documentos entre estado e União. O pedido para assinatura de novo convênio pelo governo de Alagoas foi feito em ofício ao MDR no dia 27 de julho de 2021.

No documento, o estado apresenta o plano de trabalho, com a obra orçada em R$ 636 milhões. O documento foi encaminhado ao então ministro e agora senador eleito do Rio Grande do Norte, Rogério Marinho (PL).

A resposta veio no dia 20 de setembro, quando o MDR encaminhou documento direcionado ao governador e hoje senador eleito por Alagoas, Renan Filho (MDB), cobrando a necessidade de regularização de cinco pontos:

  • Licença ambiental prévia;
  • Autorização da obra;
  • Comprovação de propriedade das áreas previstas;
  • Declaração de conformidade de acessibilidade;
  • Plano de sustentabilidade.

Em novembro, o governo enviou uma extensa minuta de resposta em que alega ter cumprido os itens pedidos, ressaltando os pontos levantados pelo TCU.

Trecho de ofício com argumentos do MDR - Reprodução - Reprodução
Trecho de ofício com argumentos do MDR
Imagem: Reprodução

Entretanto, em 1º de dezembro de 2021, o governo federal enviou novo ofício, negando firmar convênio porque o estado não teria cumprido as exigências. O MDR alegou que não seria possível fechar convênio pela necessidade de fazer "novos estudos de viabilidade".

Com isso, segundo o governo do estado, o MDR liberou apenas as verbas necessárias para finalizar o trecho 4 na gestão de Bolsonaro.

De acordo com o governo do estado, já existe um estudo que definiu os números de demanda hídrica para o dimensionamento da obra ainda antes de seu início. Ele se chama "Estudo de Viabilidade do Aproveitamento Integrado dos Recursos Hídricos do Projeto do Sertão Alagoano", realizado a pedido da Codevasf e desenvolvido pelo consórcio Hydros e Tecnosolo, no ano de 2003.

Repasses feitos por governos para a obra, segundo o governo de Alagoas:

  • Fernando Henrique Cardoso (PSDB) - R$ 18,5 milhões
  • Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - R$ 335 milhões
  • Dilma Rousseff (PT) - R$ 1,48 bilhão
  • Michel Temer (MDB) - R$ 307 milhões
  • Jair Bolsonaro (PL) - R$ 178 milhões

Canal mudou vida de moradores

O Canal do Sertão Alagoano teve projeto lançado em 1992, mas as obras só tiveram início em 2001, quando o governo federal fez a primeira transferência de valores ao estado.

Dividido em trechos, o projeto tem 250 km, com a captação ocorrendo no município de Delmiro Gouveia e o final previsto para Arapiraca. A proposta inicial aprovada prevê construção de cinco trechos, até o km 150.

Quando concluído o canal, deve beneficiar 42 municípios e mais de 1 milhão de alagoanos que vivem no semiárido.

A obra mudou a vida de produtores locais. Claudio Gonzaga, 44, conhecido como Gia do Morango, mora em Delmiro Gouveia. Ele conta que, antes do canal, trabalhava em obras de linha de transmissão.

"Aqui não tinha água para irrigação, era água de barreiro ou de cacimba. Então, deixei o campo e fui embora para a cidade", diz.

Em 2012, afirma ele, quando a água finalmente chegou ao canal, ele decidiu arriscar tudo para investir na fruticultura irrigada. "No dia em que a água passou no canal, que cortava o terreno que era da meus avós, pedi as contas da empresa onde trabalhava", lembra.

"Minha mãe me deu um pedaço de terra para plantar. Ajeitei tudo, trouxe morango lá de Minas Gerais, e hoje vivo 100% do que produzo", conta ele, que cultiva e vende na feira morangos, hortaliças, pitangas e amoras.

Plantação em Delmiro Gouveia de Cláudio: mudança de vida após o canal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Plantação em Delmiro Gouveia de Cláudio: mudança de vida após o canal
Imagem: Arquivo pessoal

Farpas políticas

A paralisação gerou uma troca de farpas entre o então governador Renan Filho e o então ministro Rogério Marinho —que em março deste ano gravou um vídeo rebatendo as declarações de que o governo federal estaria se recusando a financiar o trecho da obra.

"O governo do presidente Bolsonaro investiu R$ 180 milhões e concluiu a quarta etapa desse canal, permitindo que 113 mil alagoanos tivessem potencialmente acesso à água. Ocorre que o governador insistiu, com nosso ministério, para déssemos ordem de serviço para a quinta etapa desse canal, mas com a inviabilidade de se trabalhar, porque havia um sobrepreço, ou seja, um preço acima do mercado na época, de cerca de R$ 50 milhões, além de outras irregularidades", destacou o ministro.

A obra do canal foi alvo de questionamentos do TCU. Em agosto de 2016, por exemplo, os trechos 4 e 5 foram fiscalizados. O tribunal viu sobrepreços de R$ 33,9 milhões e R$ 48,3 milhões, respectivamente. Ela determinou que os contratos fossem repactuados —o que, segundo o estado, aconteceu.