Carlos Madeiro

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Reportagem

Corrupção, milícias e dívida externa: 10 mazelas e heranças da ditadura

O golpe de 1964 completa 60 anos neste domingo, e o período de 21 anos sob uma ditadura militar repercute até hoje no país.

O UOL separou, em dez pontos, fatos que revelam um regime ditatorial marcado não só por perseguição, tortura e morte de opositores, mas também por mazelas sociais acentuadas, como a concentração de renda, e por uma herança de dívida externa, hiperinflação e mesmo ação de milícias.

Corrupção e empreiteiras

As grandes obras são uma das principais referências da ditadura, mas por trás delas não havia órgãos de controle, nem sociedade civil organizada atuando para fiscalizar gastos com grandes empreiteiras ou denunciar corrupção. As contas públicas nem sequer eram analisadas.

Obras faraônicas como Itaipu, Transamazônica e Ferrovia do Aço, por exemplo, foram realizadas sem qualquer possibilidade de controle. O principal escopo da ditadura foi a defesa de interesses econômicos de grupos particulares. Nunca saberemos o montante desviado.
Márlon Reis, jurista e idealizador da Lei da Ficha Limpa

Foi nessa época que as grandes empreiteiras do país cresceram e passaram a dominar, com concentração de um pequeno grupo, obras de engenharia. "Hoje, com órgãos de fiscalização, imprensa e oposição livres estamos muito melhor, pois podemos reagir", diz Márlon Reis.

Vista da hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu
Vista da hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu Imagem: Paulo Whitaker/Reuterrs

Dívida externa e hiperinflação

Durante a ditadura, o país viu a economia crescer às custas de um superendividamento, que gerou uma dívida externa sobre a qual o país ainda paga juros. Entre 1962 e 1985, a dívida cresceu em mais de 30 vezes.

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Um outro drama econômico foi a explosão da inflação. Em 1985, a taxa anual chegou a 242,2% — no ano passado, a inflação foi de 4,62%. O problema só foi contido em 1994, com o plano real.

Aumento da desigualdade

O dito "milagre econômico brasileiro", entre final dos anos 1960 e início dos 1970 beneficiou quem já era rico ou aliado à ditadura, e a concentração de renda explodiu.

1960

  • 10% dos mais ricos tinham 38% da renda
  • 50% mais pobres tinham 17%
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1980

  • 10% dos mais ricos tinham 51% da renda
  • 50% mais pobres tinham 12%

Estudo feito pelo Dieese aponta que o salário mínimo em 1984 valia metade do que era pago em 1940, quando foi instituído.

Com as políticas implementadas pelo governo, houve um achatamento salarial e um empobrecimento brutal da população. Teve uma intencionalidade da ditadura na concentração de renda de forte.
Patrícia Pelatieri, diretora adjunta do Dieese

Criação de facção e milícias no Rio

O professor e pesquisador José Cláudio Souza Alves, da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), afirma que a ditadura começou controlando de forma política os grupos de oposição, com a cassação de mandatos, por exemplo. "Mas essa estratégia foi superada pelo controle minucioso das áreas onde atuavam", diz.

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Foi um grande projeto-piloto de como intervir mais diretamente no controle dessas populações no território e foi um grande modelo que se espraiou pela baixada [do Rio]. A ditadura viu nisso um grande projeto de controle territorial, e as milícias são uma super evolução desse modelo, que segue hoje apenas com alterações.
Cláudio Alves, da UFRRJ

Também foi durante a ditadura que surgiu, em 1979, a facção Comando Vermelho dentro do presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande.

Ignacio Cano, professor e membro do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), explica que a chegada dos presos políticos foi fundamental para organizar os presos. "Eles adquiriram maior coesão, em vez de brigar entre si."

O impacto da ditadura na criação do CV foi pequeno, mas veio por ter levado presos políticos, que organizaram melhor aqueles detentos. Na verdade, a gente não sabe se a mesma coisa teria acontecido sem a chegada dos presos políticos.
Ignacio Cano, da Uerj

Antigo Presídio de Ilha Grande, no Rio
Antigo Presídio de Ilha Grande, no Rio Imagem: Museu do Cárcere

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Tortura e perseguição

As torturas e os assassinatos são a marca mais violenta do período da ditadura — mas havia ainda perseguição e veto a qualquer manifestação pública contra a ditadura.

Atos como o de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no último dia 25 de fevereiro não seriam tolerados pelo governo federal após o AI-5 e — se houvesse insistência — resultaria em prisões (sem chance de habeas corpus, recurso que estava suspenso).

Nem mesmo religiosos escapavam da perseguição.

Se você fosse oposição, sofria perseguição do governo e das igrejas onde tinha certa liderança mais alinhada com o regime militar. Havia processos de delação feitos por lideranças religiosas mais conservadoras católicas e evangélicas. Isso foi catalogado nos arquivos do DOI/Codi.
Claudio Ribeiro, pastor metodista, integrante do Coletivo Memória e Utopia

Militante perseguido PMs durante ato estudantil no Rio
Militante perseguido PMs durante ato estudantil no Rio Imagem: Arquivo Nacional
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Censura e ataque à imprensa

Para controlar as informações, os militares criaram o Conselho Superior de Censura, que informava ao Tribunal da Censura nome de jornalistas e meios de comunicação que burlassem as restritas regras. Artistas também tinham que submeter suas obras para análise.

Além disso, não havia espaço para emissoras concessões públicas (rádios e TVs) fazerem críticas ao governo — como ocorre hoje.

Numa visita do presidente [Ernesto] Geisel a Alagoas, colocamos as manchetes na TV: 'Geisel chega a Maceió; Ratos invadem a Pajuçara'. Telefonaram da polícia para o Pedro Collor [então diretor], e ele nos chamou na sala dele e o jornalista Joaquim Alves, que havia feito a matéria dos ratos, foi afastado.
Iremar Marinho, jornalista

Ditadura: carta aos brasileiros de Goffredo da Silva Telles Júnior foi lida durante o governo do general Ernesto Geisel (foto)
Ditadura: carta aos brasileiros de Goffredo da Silva Telles Júnior foi lida durante o governo do general Ernesto Geisel (foto) Imagem: GETTY IMAGES
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Sem SUS, saúde era restrita

Na época da ditadura não havia SUS, e quem prestava atendimento público era o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) com seus hospitais. O sistema, porém, não era universalizado: o serviço era restrito a trabalhadores com carteira assinada.

Hoje, por exemplo, os desempregados e os 40 milhões de trabalhadores informais não teriam direito ao atendimento médico.

Durante o regime militar, surgiu a prestação de serviço pago, com convênios, hospitais e clínicas privadas. Em 1976, quase 98% das internações eram feitas em hospitais privados.

Segundo o IBGE, "entre 1965/1970 reduz-se significativamente a velocidade da queda [da mortalidade infantil], refletindo, por certo, a crise social econômica vivenciada pelo país".

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Fila na porta de prédio do Inamps
Fila na porta de prédio do Inamps Imagem: Divulgação/ Acervo Xico Tebaldi

Mobral, um 'retumbante fracasso'

Um dos maiores fracassos da ditadura está no desempenho do país na educação. Na alfabetização, a grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização), programa que durou de 1968 a 1978.

Ele foi uma resposta ao método do Paulo Freire, que era considerado "subversivo" pelo governo e acabou exilado.

Segundo o estudo "Mapa do Analfabetismo no Brasil", do Inep/MEC (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), o programa foi improvisado e ficou longe de atingir o objetivo.

A improvisação geralmente redunda em fracasso como a nossa própria experiência nos ensina. Nunca é demais relembrar que o Mobral, que pretendeu erradicar o analfabetismo a baixo custo, foi um retumbante fracasso.
Inep/MEC

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Nordeste mais pobre e migração do campo

A pobreza no Brasil ampliou a migração do Nordeste para o Sudeste.

Terminada a ditadura, o Nordeste mantinha os piores índices de esperança de vida ao nascer, mortalidade infantil e alfabetização. Entre 1970 e 1990, o número de pobres na região aumentou de 19,4 milhões para 23,7 milhões, e sua participação no total de pobres do país subiu de 43% para 53%.
Cícero Péricles Carvalho, professor da Ufal

Outro ponto importante é que, naqueles anos, houve um crescimento urbano, que levou pessoas a deixar o campo e buscar as cidades. Atividade industrial ganhou espaço, e participação do setor no país passou de 12% para 28%.

Migrantes nordestinos embarcam no veículo 'pau de arara'
Migrantes nordestinos embarcam no veículo 'pau de arara' Imagem: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
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Desmatamento da Amazônia

Foi no governo militar que teve início um processo amplo de devastação da Amazônia e morte de indígenas. A ideia dos militares era que a Amazônia deveria ser ocupada por "homens sem terra do Nordeste." Nessa época, ganhou força a grilagem, criando conflitos e expulsando povos tradicionais.

Ribeirinhos, índios e quilombolas foram duramente reprimidos tanto ou mais que os moradores das grandes cidades. Tivemos dois mil Waimiri-Atroaris, do Amazonas, assassinados e desaparecidos pelo regime para as obras da BR-174.
Helena Palmquist, mestre em antropologia pela UFPA

Obras como as usinas hidrelétricas de Tucuruí e Balbina também não tiveram impactos ambientais ou sociais previamente analisados, nem houve compensação aos moradores que deixaram as áreas alagadas.

O resultado disso é que o forte desmatamento acelerou os impactos das mudanças climáticas e tornaram a Amazônia mais quente e seca e ajudando a mudar o clima de todo o planeta.

Desenho feito por um waimiri-atroari entre 1985 e 1986 mostra homens, munidos de bombas, dinamites e fuzis, cercando uma aldeia; segundo a tradução do indigenista Egydio Schwade, as anotações citam índios mortos e questionam o porquê do "homem civilizado ter matado os waimiris-atroaris"
Desenho feito por um waimiri-atroari entre 1985 e 1986 mostra homens, munidos de bombas, dinamites e fuzis, cercando uma aldeia; segundo a tradução do indigenista Egydio Schwade, as anotações citam índios mortos e questionam o porquê do "homem civilizado ter matado os waimiris-atroaris" Imagem: Reprodução/Relatório Comitê Estadual da Verdade do Amazonas

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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