Quando religioso era retratado na TV como homossexual e ninguém reclamava
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Entre aqueles que se sentem ofendidos com o especial de Natal do grupo Porta dos Fundos, muitos recomendam aos jovens comediantes independentes que sigam o modelo de humoristas do passado. Chico Anysio, por exemplo. Mestres assim, defendem esses "comentadores", não usariam o expediente de brincar com figuras religiosas, muito menos questionar-lhes a sexualidade.
Quem usa esse argumento não tem memória. Entre as dezenas de personagens criados por Chico Anysio, muitos certamente vão lembrar de um que fez grande sucesso: Painho. Era o pai de santo que demonstrava claramente ser homossexual. Tinha trejeitos afeminados, cílios postiços, maquiagem, bijuterias e voz lânguida.
Sentado em uma cadeira de vime, o líder de uma religião afrobrasileira (não se sabe se candomblé ou umbanda) conversava com as seguidoras, sempre dando pistas de suas escolhas sexuais. Volta e meia, se espreguiçava e soltava o bordão "Afffe... Eu tô morta!"
Para não restar qualquer dúvida, o terreiro que comandava tinha o nome de Abaitolá. Desnecessário recordar que no Nordeste os gays são chamados pejorativamente de "baitolas" por alguns.
Painho começou a aparecer nos programas de Chico Anysio no início da década de 80 e ficou no ar por muito tempo. Não se tem notícia de reclamação relevante pelo fato de um pai de santo ser retratado como gay.
Na decisão que tirou do ar o programa natalino do Porta dos Fundos (posteriormente anulada), o desembargador Benedicto Abicair argumenta que a medida seria adequada para "a sociedade brasileira, majoritariamente cristã". O caso de Painho tem a ver com religião de matriz afro, que, apesar de não ser majoritária, tem milhões de seguidores no país. O desembargador teria manifestado a mesma preocupação se despachasse na época?
Os mais velhos entre os insatisfeitos com a sátira veiculada na Netflix também problematizaram quando Painho era sucesso na telinha, muitos anos atrás? Ou o respeito ao sagrado, que alegam, só vale para a própria religião?
Como se vê, fazer humor a partir da religião não é nenhuma novidade no Brasil. Exemplar de outro tipo, sem matizes de sexualidade, era o personagem Tim Tones, também de Chico, um pastor inescrupuloso que só pensava em dinheiro. Seu bordão era "Podem passar a sacolinha". Também não causou maiores turbulências na época em que foi sucesso. Imagine se fosse apresentado hoje.
É senso comum que as religiões afro estão entre as que menos discriminam homossexuais e talvez isso tenha colaborado para maior assimilação do quadro de Painho por parte de seus adeptos. Por não encararem como algo negativo ter um religioso gay em seus quadros, o candomblé e a umbanda mostram na prática como se luta contra o preconceito.
Uma lógica muito diferente de tantos que nos últimos dias usaram a internet e as redes sociais para disseminar o ódio em nome do Cristianismo. Justamente o contrário do que foi pregado pelo Cristo, que eles tanto dizem defender.
Atualização, às 10:10, de 10/01/2019:
Muitos comentários sobre o artigo chamam a atenção para o fato de que Painho era um representante terreno da religião, enquanto Jesus Cristo é, para muitos católicos e evangélicos, a representação do próprio Deus. Sendo assim a sátira ao segundo seria desrespeitosa e ao primeiro, não. Usando esse raciocínio, pode-se concluir que aceitariam sem problemas que o Porta dos Fundos ou outro grupo faça piada mostrando um pastor, bispo ou padre (para esses, o "equivalente" a um pai de santo) como homossexual que relata suas conquistas amorosas, como era o personagem de Chico Anysio?
A resposta todos sabem qual é.
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