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Após nova matança no Rio, defensores de direitos humanos se dizem perplexos
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As cenas de corpos espalhados nas ruas das favelas cariocas, que se repetem tragicamente, são acompanhadas de perto por ativistas da sociedade civil que dedicam suas vidas a defender os direitos humanos. Não há cidade onde essa tarefa poderia ser mais difícil que no Rio de Janeiro, onde a letalidade da polícia ultrapassa todos os limites, a ponto de chamar atenção do mundo.
Depois da matança ocorrida ontem, no Complexo da Penha, em que pelo menos 25 pessoas foram mortas durante operação da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal, a coluna procurou alguns desses militantes da paz, para saber qual o sentimento de quem rema contra a maré, no estado onde as vítimas fatais em ações policias podem ser contadas em dezenas:
Silvia Ramos, há mais de 30 atuando na defesa dos direitos humanos. Coordenadora do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (Cesec), cientista social.
O dia começa com a notícia de que oito pessoas foram mortas em uma operação policial. Chega informação aqui, informação acolá. O número de mortes sobe para 12, depois para 15. Vinte e duas pessoas no final do dia de ontem e hoje já chegou a 25. Esses números assombram por causa da escalada. Os números da Chacina do Jacarezinho e dessa matança na Vila Cruzeiro espantam. Não é uma pessoa, nem duas ou três que se confrontaram com a polícia e foram mortas. Foram vinte e tantas, mostrando que há uma determinação da polícia de entrar nas favelas para matar, para executar e para exterminar aqueles que consideram inimigos ou opositores.
Isso se mistura com a ideia de que essas operações são legais, estão acobertadas pelos seus chefes e pelo próprio governador do Rio de Janeiro. Mais tarde pelo próprio presidente da República. Nem em um lugar em guerra as coisas ocorrem assim, há regras. A polícia não pode entrar matando. Mas no Rio de Janeiro isso está sendo feito.
O segundo espanto é que essa não é uma matança típica das polícias fluminenses, que fazem isso há muitos anos. Teve a participação da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal, que eram conhecidas no passado por apreender grandes quantidades de drogas e de armas sem dar um tiro. É muito preocupante essa degradação, essa ideia de que Polícia Federal, ao invés de estar ali investigando, desarticulando quadrilha, tem que estar fazendo a mesma coisa que a PM, se confrontando todos os dias, indo lá na favela, dando tiro e matando a gente.
O que acontece com essas quadrilhas? Elas se armam mais no dia seguinte, compram mais armas, mais munições. Dali a uma semana, um mês, estão todas de novo armadas. E as polícias então vão lá e matam de novo e dão tiros. Assim vamos e são mais de mil mortes por ano. Há vários anos.
Isso assusta, deixa um sentimento de perplexidade, em que a gente fala: "eu não acredito que está acontecendo". A pior coisa que poderia acontecer conosco como sociedade seria naturalizar ou banalizar, dizer "isso é na favela, então está tudo certo". Não, não está tudo certo. A polícia não pode matar ninguém, muito menos produzir uma matança com mais de vinte pessoas em uma única operação. Nas favelas, onde são todos negros, todos pobres, praticamente sem nome. São pessoas cuja memória vai se desvanecer.
E assim o que fica na memória do Rio de Janeiro é uma ideia de que nós temos uma polícia violenta e ineficiente. Essa violência toda não produz um aumento de segurança, pelo contrário. As facções e as milícias no Rio estão se fortalecendo, se articulando mais e se armando mais. O que justificará novas operações, com novas mortes.
Nós precisamos interromper esse ciclo. Não vamos desistir de produzir uma nova estratégia na área de segurança.
Antonio Carlos Costa, fundador da ONG Rio de Paz, teólogo e jornalista. Atua na defesa dos Direitos Humanos desde 2007.
São três os sentimentos. Primeiro, o de compaixão pelos parentes das vítimas, compaixão pelas vítimas. Porque, apesar do envolvimento com o crime -- com exceção da moradora que parece ter sido vítima de bala perdida --, fica sempre essa questão: onde falhamos como sociedade? Em que o Estado brasileiro se equivocou? Como eles chegaram ali? O que país lhes negou e que fez, portanto, com que eles se envolvessem com o mundo do crime?
A meta do homem não é matar, a meta do ser humano é ser feliz. O envolvimento com a prática criminosa é meio. Então, se meios forem oferecidos a esses rapazes para que eles alcancem os fins que tanto almejam, não vão se envolver com o crime.
O segundo lugar é o sentimento de perplexidade. Como o Estado insiste em uma política de segurança pública que nunca deu certo? Todos sabem o que precisa ser feito. Há estudos e mais estudos sobre as raízes dessa violência. E o que está por trás do alto índice de letalidade do nosso país? Por que medidas tão óbvias não são implementadas?
E, por fim, um sentimento de revolta. Porque sabemos que essas ações fazem parte de uma cultura que remonta à forma como esse país foi colonizado e hoje eu diria que é adubada por quem ocupa o mais alto posto da República e conta com o apoio de milhões de brasileiros.
Porque não foram só os dedos dos policiais que apertaram aqueles gatilhos. Ali tem os dedos de milhões de brasileiros que os aplaudem. O que eles são é puro reflexo de grande parcela da população.
Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil e integrante do quadro da direção do Fundo Global para Mulheres.
A repetição de operações altamente letais, que produzem chacinas, tem sido uma marca do governo de Cláudio Castro: em um ano de gestão, sua política já produziu 180 assassinatos em 39 chacinas, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense. No mesmo território, a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal produziram uma chacina com 8 pessoas mortas no Complexo da Penha em fevereiro. Mais de 30 mortes no mesmo Complexo em 3 meses.
A despeito da vigência da ADP635 e do lançamento, pelo governador, de um arremedo de Plano de Redução da Letalidade Policial, as operações policiais não estão cumprindo as determinações de agir somente em casos de absoluta excepcionalidade. Além de desrespeitar decisão do Supremo Tribunal Federal, atropelam leis, a Constituição Federal, os protocolos internacionais que regulam o uso da força por agentes do Estado e afrontam os direitos básicos da população (que é majoritariamente negra) de favelas e periferias.
Que nome dar a isso? Que autoridade vai agir para restaurar a lei, o direito e o dever do Estado de cumpri-las?
O sentimento pessoal é de tristeza, revolta. É morte demais, sangue demais. E é revoltante ver governantes com visão abaixo e aquém da ética, do respeito à vida e aos direitos básicos. É revoltante ver gente comemorar mortes. Vivemos tempos muito difíceis.
Mas, como ativista, coloco a energia na ação capaz de contribuir para que as mudanças urgentes estejam mais perto.
André Castro, defensor titular do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Ontem e hoje, eu e outros integrantes do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos e da Ouvidoria estivemos na comunidade, assim como nos hospitais e no IML. Na tarde de ontem, solicitamos um cessar-fogo humanitário para resgatar feridos, diante dos apelos que recebemos das famílias, mas não conseguimos. Até agora, já são 25 pessoas mortas nesta operação, de altíssima letalidade.
A Defensoria Pública está aguardando as respostas aos ofícios enviados ao COE (Comando de Operações Especiais) e os laudos do IML. Também iremos coletar os depoimentos de familiares e moradores sobre as mortes ocorridas. No intervalo de um ano, foram cometidas as duas maiores chacinas do Estado em operações policiais.
Esses fatos já foram relatados em petição ao STF e, junto com vários outros peticionários, pedimos a rejeição do plano de redução de letalidade apresentado pelo Estado, visto que, na prática, a letalidade só tem aumentado.
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