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CPI demonstra que bolsonarismo é modelo de sociabilidade a ser superado

30.jul.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em discurso no Palácio do Planalto - Adriano Machado/Reuters
30.jul.2021 - O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em discurso no Palácio do Planalto Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

04/08/2021 11h29

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* Cesar Calejon

Em sua segunda fase, a CPI da Covid volta com força total, após, nos últimos meses, ilustrar graficamente o vale-tudo empenhado pelo bolsonarismo, incluindo superfaturamento de vacinas, corrupção e todas as sortes de esquemas ilegais e mentiras.

Apesar disso, o bolsonarismo é o resultado de um processo de degradação histórica e cultural que vem se materializando ao longo dos últimos séculos, sobretudo nas sociedades ocidentais.

Com a virada do feudalismo para a sociedade capitalista, surge um novo modelo de sociabilidade menos brutal, contudo, mais organizado no parâmetro da competição e do "mérito individual" para justificar as desigualdades vigentes.

Precisamente por este motivo, por exemplo, a dinâmica dos Jogos Olímpicos, que formam o maior evento desportivo do planeta, segue sendo a mesma ao longo dos últimos dois mil anos, mas com tempos e resultados cada vez "melhores" e mais agressivos, ao ponto de levar atletas a colapsarem e desistirem das competições, inclusive, por conta da falta de limites (éticos e físicos, muitas vezes) na busca pela vitória.

Durante o começo do século XXI e no Brasil, especificamente, o bolsonarismo representa o apogeu desta lógica: vale absolutamente tudo para conquistar a vitória, porque essa em si justificaria qualquer medida e seria capaz de simplesmente apagar os equívocos prévios.

Desinformar, mentir e criar "fatos" passam a ser aceitos como medidas legítimas para alcançar o objetivo desejado — no caso do bolsonarismo, permanecer à frente do governo brasileiro. Demonstrar essa dinâmica de forma clara é a maior contribuição que a CPI vem efetivando junto à sociedade brasileira.

Dessa forma, para muito além de remover Bolsonaro e o seu secto da Presidência da República, é preciso olhar para o atual modelo de sociabilidade que permitiu a ascensão do próprio bolsonarismo no sentido de transformá-lo. Nessa medida, o elitismo histórico-cultural, conceito que eu utilizo no livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI como um dos principais vetores para refletir acerca da ascensão do bolsonarismo em 2018, passa a ser o ponto nevrálgico desta equação.

De forma super resumida e conforme citado em outras publicações realizadas nessa coluna: o elitismo histórico-cultural é a força social, histórica e culturalmente constituída presente na organização das sociedades humanas desde a Revolução Neolítica que atua no sentido de estruturar os arranjos sociais com base em um parâmetro elitista e que se manifesta de múltiplas maneiras de acordo com a época e a cultura em questão.

Muitos déspotas fizeram uso dos elitismos histórico-culturais ao longo da história humana, catalisando a organização de um modelo de sociabilidade segregatório e hiper competitivo para fazer a manutenção dos seus poderes.

Portanto, ao longo dos últimos séculos, mas, de forma mais enfática, a partir da Primeira Revolução Industrial (1760), que marca a transição do sistema feudal para o capitalista, a dimensão do elitismo histórico-cultural passa a ser utilizada com ênfase progressiva no sentido de viabilizar uma reprodução cada vez mais eficiente do capital e de assegurar o domínio das classes dominantes, que surgem atualmente como resquícios das sociedades ternárias (ou trifuncionais europeias: clero, nobreza e terceiro estado), sobre o restante da população.

Nas sociedades europeias trifuncionais que existiram durante o medievo (entre os séculos V e XV), por exemplo, o clero era responsável por organizar conteúdos intelectuais que desencorajavam a competição entre as classes. O preceito elementar era o de que cada grupo deveria ocupar obedientemente a sua respectiva posição (e função social) para o pleno funcionamento da coletividade.

Assim, os nobres (classe guerreira) eram estimulados a não interferirem com a formulação das ideologias vigentes na sociedade, enquanto a classe clerical era estimulada a não interferir (diretamente) nas questões militares e o terceiro estado (trabalhadores e plebe em geral) era instruído a continuar produzindo, servilmente, para sustentar esses dois grupos dominantes.

Existem relatos históricos de trabalhadores que tiveram os seus pés e mãos cortados no sentido de esfriar qualquer ímpeto indagador ou revolucionário que visasse questionar o funcionamento do modo de sociabilidade como ele estava organizado naquela ocasião. Após as mutilações, essas pessoas eram retornadas às suas famílias, para que a população tivesse contato com os horrores que os esperavam caso eles ousassem se insurgir.

Com o fim da Idade Média, as classes dominantes passam a ser obrigadas, igualmente por circunstâncias históricas e culturais, a adotarem métodos mais sutis e eficazes no que tange a manutenção do controle social e, evidentemente, dos seus privilégios em detrimento da emancipação da população.

A partir da década de 1980, com Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, o fim do estado de bem-estar social (nos países centrais da economia capitalista global) e a ascensão da forma mais financeirizada e voraz do capitalismo, essa abordagem que caracteriza o modelo como os arranjos sociais são organizados, acentua exponencialmente o estímulo ao individualismo e à competição.

Quatro décadas depois, o bolsonarismo aparece como sintoma mais agudo (e não a causa primária) de um modelo de sociabilidade que deve ser reorientado sob pena de vivenciarmos futuras expressões autocráticas de governo que estarão pautadas pela competição ilimitada e por medidas que visam manter a maior parte da população nacional submissa às ordens das classes dominantes.

* Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela FGV e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela USP (EACH). É escritor, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente).