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Diante de protestos golpistas, militares escancaram bolsonarização

Militares prestam continência a Bolsonaro - Presidência da República
Militares prestam continência a Bolsonaro Imagem: Presidência da República

Colunista do UOL

16/11/2022 11h50

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Numa democracia, militares deveriam ser discretos. Uma vez reformados, deveriam manter-se alheios à política, para que não sejam porta-vozes daqueles que ainda têm o dedo no gatilho. Porém, como o Brasil ainda está distante de ser uma democracia plena, generais e demais detentores de patentes elevadas sentem-se no direito de ocupar o espaço de um suposto poder moderador.

Afirmam fazê-lo para proteger o povo, enquanto apenas asseguram seu soldo mantendo uma espada rente ao pescoço que sustenta a cabeça da República, fundada, aliás, por um golpe militar que, no último dia 15, completou 133 anos.

O próximo a senti-la é Luiz Inácio Lula da Silva. Diferentemente de qualquer outro presidente democraticamente eleito, ele enfrenta, mesmo antes da posse, não apenas a arrogância de quem se acha moderador dos poderes constitucionais, mas um inimigo muito pior: o bolsonarismo, o movimento de extrema direita mais bem-sucedido da história brasileira, o qual claramente capturou generais que, por limitações intelectuais ou de formação, imaginavam serem capazes de controlar o capitão reformado.

"Com incrível persistência, mas com ânimo absolutamente pacífico, pessoas de todas as idades, identificadas com o verde e o amarelo que orgulhosamente ostentam, protestam contra os atentados à democracia, à independência dos poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral", escreveu o general Eduardo Villas Bôas no feriado da Proclamação da República, em nota publicada no Twitter.

Nada de novo no front: Villas Bôas apenas segue o roteiro golpista inaugurado em 2018, quando, ainda comandante do Exército, impôs ao Supremo Tribunal Federal (STF) a necessidade de manter Lula preso, alterando, assim, os rumos das eleições daquele ano, que levaram Jair Messias Bolsonaro a ocupar a Suprema Magistratura da nação.

Bolsonarismo e militarismo salvacionista são irmãos siameses. Ambos reciclam na atualidade os maiores horrores da vida nacional — ditadura, agrarismo, machismo, racismo, boçalidade (no sentido de ignorância, mas com significativas doses de estupidez). Pensando nesses males, defini, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, o maior movimento político de extrema direita da nossa história como um fenômeno social sustentado por cinco pilares — todos com a inicial B.

O penta B — fórmula do bolsonarismo — consiste na combinação explícita da base sociológica da bancada BBB — boi, bala e Bíblia — com dois elementos historicamente escamoteados no Brasil — a branquitude e a boçalidade — a última, aliás, confunde-se com o bolsonarismo-raiz, pois independe dos demais pilares para explicar a adesão à extrema direita.

Onde entram os militares nessa equação destruidora? Os fardados, que deveriam ser o braço armado da democracia, integram parte da bancada da bala quando defendam a lógica de que "bandido bom é bandido morto" ou, de modo mais amplo, a exceção à lei para que se cumpram supostas boas intenções.

No entanto, dependendo do estrato, pode-se encontrar militares cuja lealdade religiosa sobrepõe-se àquela prestada ao Estado. Já publicamos nesta coluna reportagem sobre os ditos policiais militares de Cristo, que fazem cultos nas corporações. Nas forças federais, há fenômeno similar, porém, em menor escala.

Com a devida vênia, militares também estão inseridos num ambiente propenso à boçalidade. Aparentam ignorar que não mais vivemos na Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética e, assim, endossam o discurso bolsonarista contra um suposto comunismo. Outra reportagem publicada pelo UOL em 2020 revelou que a listas bibliográficas de cursos de academias militares estão desatualizadas, isso quando não incluem publicações de autores simpáticos ao bolsonarismo, em particular Olavo de Carvalho.

O futuro imediato favorece que o penta B recorra ao militarismo para continuar a pautar a agenda pública, ainda que esteja na oposição. Isso porque, mesmo com a troca de governo, seguiremos dependentes do "boi" na economia. Reindustrializar o Brasil é condição essencial para dotar nossa sociedade da complexidade necessária à manutenção da democracia, mas é tarefa de longo prazo, o que indica que permaneceremos à mercê dos interesses do agronegócio e suas expressões socioculturais, que são legítimas, muito embora bastante limitadas economicamente e intelectualmente.

Assim, os latifúndios do mundo real projetam-se numa monocultura ideológica, com uma visão de mundo de baixa complexidade, que cai como uma luva no ideário simplório herdado da noção de segurança nacional da Guerra Fria. Nesse contexto, há um inimigo da nação — nesse caso, um suposto comunismo que reúne tudo que se opõe ao bolsonarismo. Tal inimigo operaria internacionalmente, na figura de governos estrangeiros e organizações globalistas, mas, sobretudo, teria forte presença interna, nos partidos políticos e segmentos sociais que não se ajoelham ao capitão.

Como militares chegaram a esse ponto de alienação? Seriam esses "boçalnaristas" a maioria da tropa? Não deixa de ser sintomático que em vilas militares Brasil afora, inclusive aquela onde Bolsonaro mantém seu domicílio eleitoral, no Rio de Janeiro, o atual presidente tenha obtido vitória esmagadora sobre Lula já no primeiro turno.

Desde a fundação da República até o fim da ditadura militar, o ethos dominante do militarismo brasileiro ecoou pressupostos positivistas com doses intermitentes de salvacionismo. A experiência bolsonarista no poder demonstrou que a espada de Caxias, embora sempre alinhada a interesses das elites dominantes, foi contaminada por uma espécie de salvacionismo messiânico. Longe de ser um pleonasmo, o termo cai como uma luva para descrever os efeitos da falta de racionalidade na tropa e altos comandantes, muitos dos quais ficaram do lado do presidente na falta de gerenciamento da pandemia.

Eis o maior fantasma do terceiro mandato de Lula: uma ameaça constante de golpe por parte dos mais radicais da caserna, os quais se regozijam de ver, na frente de quartéis bolsonaristas, órfãos conclamando por aberrações político-institucionais. Contra esses atos, o novo governo poderia investir na atualização do treinamento intelectual militar. Isso, porém, pareceria doutrinação às avessas num ambiente altamente polarizado.

Assim, o espectro boçal do bolsonarismo haverá de nos amedrontar por muitos anos. Seu impacto projeta-se além do novo ciclo presidencial e dos muros dos quartéis. Em última instância, os "boçalnaros"— de farda ou não — são a base social de uma direita retrógrada e, portanto, da nossa limitação como democracia e República. Clamores por ordem sem racionalidade não levam a progresso algum, mas formam um terreno fértil para que as vivandeiras floreçam no deserto de ideias dos quartéis e da direita brasileira em geral.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.