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OPINIÃO

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Tutela militar sobre governos é problema central da democracia

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do vice-presidente Hamilton Mourão - Reuters
O presidente Jair Bolsonaro ao lado do vice-presidente Hamilton Mourão Imagem: Reuters

Colunista do UOL

18/11/2022 00h24

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* Raul Galhardi

Lula ganhou e agora se discute os inúmeros desafios que terá pela frente, especialmente os de ordem econômica e política, já que encontra-se diante de um país dividido e com rombos no orçamento. Porém, quase nada tem se falado sobre o que é um dos maiores problemas históricos da democracia brasileira: a interferência militar na política. Os fardados voltaram a atuar diretamente nos rumos da nação e pretendem continuar assim seja qual for o governo de ocasião.

Tivemos pelo menos três episódios recentemente que servem como exemplos de como os militares entraram na cena política e nela ficarão com o apoio, consciente ou não, de setores da imprensa. Nesta última terça-feira (15), o general e ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, divulgou nota nas redes sociais em apoio às manifestações antidemocráticas contra o resultado das eleições que assolam o país e com críticas à "grande imprensa" pela sua "indiferença" diante delas.

Villas Bôas é o mesmo que, em abril de 2018, ameaçou indiretamente o STF por meio de um tuíte na véspera do julgamento de um habeas corpus reivindicado pelo atual presidente eleito Lula, no qual o então chefe da Força intimidava a corte ao repudiar o que chamava de "impunidade".

Na última sexta-feira (11), comandantes das Forças Armadas (FA) divulgaram uma nota à imprensa em que demonstram posição dúbia ao defenderem a democracia e criticarem "excessos" dos manifestantes bolsonaristas que não aceitam os resultados das urnas, mas sem condená-los, afirmando que não há crime na realização das manifestações e que as FA defendem a "liberdade de expressão".

O comunicado deixa bastante claro que os militares se consideram uma espécie de "poder moderador" da nação. "A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, com a democracia e com a harmonia política e social do Brasil, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história", diz trecho da nota.

Dois dias antes, na quarta-feira (9), o Ministério da Defesa enviou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o relatório técnico de fiscalização do sistema eletrônico de votação realizado pelas Forças Armadas que afirma que não houve inconsistência entre os dados das urnas e os dados disponibilizados pela Justiça Eleitoral. No entanto, não é função dos militares fiscalizar e dar parecer sobre as eleições. Seu papel é auxiliar o Tribunal na logística e segurança do pleito, providenciando o transporte de urnas eletrônicas, de colaboradores da Justiça Eleitoral e de materiais e atuando em conjunto com os órgãos de segurança pública e por solicitação de autoridade eleitoral para permitir que os brasileiros exerçam o direito ao voto.

Está muito claro, devido a essa e outras várias outras ações, como a tentativa de emplacar o general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa de Bolsonaro, no cargo de diretor-geral do TSE, que os fardados desejam se tornar fiadores do processo eleitoral, cumprindo a "vocação histórica" que acreditam ter de "salvadores da nação" de seus "inimigos internos".

Militarização da política

Como já discutido em entrevista nesta coluna, os militares chegaram ao poder usando Bolsonaro como "cavalo de Troia" e pretendem continuar segurando as rédeas do país sejam quais forem os governos que virão. Segundo o coronel da reserva Marcelo Pimentel afirmou nesta entrevista, Bolsonaro serve aos interesses do chamado "Partido Militar", cuja cúpula seria formada por oficiais da "Geração de 70" da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), a mesma de Bolsonaro.

O livro "Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro", do jornalista Fabio Victor, deixa claro que não foi Bolsonaro que atraiu a categoria para o governo, mas que na verdade foi ele o escolhido pelos chefes das Forças Armadas para representá-los no projeto de tomada do poder pelo voto.

Em entrevista, o antropólogo Piero Leirner, especialista no universo militar, afirmou que um consórcio de oficiais dos mais altos graus hierárquicos do Exército na ativa e reserva estaria organizando uma reestruturação do Estado com objetivos a longo prazo a partir da ocupação de espaços na máquina pública.

Não é difícil perceber que vivemos atualmente sob um governo militar, embora incrivelmente isso não seja reconhecido por boa parte da imprensa, que ainda insiste em resumir os militares a uma "ala" do governo. Temos um presidente militar, um vice-presidente, ministros e mais de oito mil militares na máquina pública federal, número maior do que o existente na própria ditadura.

Em abril deste ano, Lula avisou que iria "desmilitarizar" a administração pública federal. "Nós vamos ter que começar o governo sabendo que nós vamos ter que tirar quase oito mil militares que estão em cargos, pessoas que não prestaram concursos", declarou o líder petista durante reunião na Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Porém essa será uma tarefa extremamente difícil, já que o protagonismo militar na política remonta aos tempos imperiais. A interferência militar nos rumos do país é a regra no Brasil, não a exceção. Desde o fim do século XIX, os fardados participaram das principais mudanças políticas da sociedade brasileira. A própria Proclamação da República, fruto de um golpe militar, representa o marco histórico inicial deste fenômeno.

No livro "Só mais um esforço", o filósofo Vladimir Safatle defende que o Brasil ainda não superou os fantasmas da ditadura militar e que a anistia dada aos fardados gerou o caldo que resulta hoje nos pedidos de intervenção militar por bolsonaristas. A falta de esclarecimento do que ocorreu no período, que veio tardiamente apenas em 2014 com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, e principalmente a ausência de punição aos integrantes do regime que violaram direitos humanos foram dois fatores essenciais que resultaram no atual cenário caótico do país.

Após a redemocratização, durante as décadas de 90 e 2000, os fardados passaram a atuar politicamente de forma mais discreta. Nesse período, segundo relata o livro de Victor, a relação do Executivo com os fardados dependia do quanto os presidentes conseguiam agradá-los, mantendo e aumentando remunerações, investimentos e status. Essas sempre foram as metas dos chefes militares, bem como a manutenção da impunidade quanto aos crimes cometidos na ditadura, materializada na Lei de Anistia.

Foi, entretanto, com a criação da Comissão Nacional da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff (PT) que os militares, inicialmente os da reserva, atiçaram-se e passaram a interferir de forma mais direta nos rumos do país. Esse fato e a ideia cogitada pelo governo de mudança no conteúdo de ensino das academias militares fizeram com que a categoria abandonasse a discrição e embarcasse na empreitada que resultaria na eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Porém, embora a história brasileira seja marcada por intervenções militares, é de extrema importância lembrar o óbvio: nas democracias, as Forças Armadas devem obedecer ao governo civil.

Para evitar que o poder militar se volte contra o poder civil, uma das formas de controle sobre as Forças Armadas defendida por especialistas, que adquiriu um status de padrão a ser seguido, é a profissionalização dos militares, que compreende o conjunto de atividades, curso e treinamentos que visam especializar o militar na condução da guerra e na perfeita administração e operação dos recursos de violência monopolizados pelo Estado.

O objetivo, portanto, é a preparação da categoria para a guerra, isto é, a especialização do militar no ofício da guerra. A consequência esperada dessa profissionalização é o afastamento da participação política dos militares fazendo com que uma instituição criada para instrumentalizar a força não se volte contra o próprio Estado.

No Brasil, entretanto, apesar de alguns esforços nesse sentido, como a criação do Ministério da Defesa e da publicação de documentos como a Política de Defesa Nacional (PDN) e a Estratégia Nacional de Defesa (END), que refletem sobre a Defesa e o papel dos militares no país, essa profissionalização nunca foi alcançada de fato.

Projeto de nação 2035

Em maio deste ano, os institutos General Villas Bôas, Sagres — ONG que reúne militares e ultraconservadores para prestação de consultorias — e Federalista lançaram o documento "Projeto de Nação - O Brasil em 2035". No texto, são elencadas propostas para o Brasil até 2035, com cenários em diferentes áreas: da geopolítica mundial e governança nacional ao desenvolvimento econômico, educacional, da saúde, defesa e segurança. Em linhas gerais, o documento articula propostas a serem implementadas gradualmente, sob a coordenação de um órgão especialmente criado para este fim

O projeto foi coordenado pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-presidente da organização não-governamental (ONG) Terrorismo Nunca Mais (Ternuma) do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra — ex-chefe do DOI-CODI. No governo Bolsonaro, ele foi nomeado membro da Comissão da Anistia, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em 2021, foi autor da nota "Aproxima-se o ponto de ruptura", divulgada pelo Clube Militar após a anulação dos processos do ex-presidente Lula na Lava Jato.

O documento lista 37 temas, divididos em sete eixos, para implantação do "projeto de nação" e tem o intuito de oferecer aconselhamento estratégico aos políticos que vierem a governar o Brasil pelos próximos anos. O projeto de nação foi lançado em um evento que contou com a presença do general e vice-presidente Hamilton Mourão, o que reforça a ideia de que são as propostas dos militares para o Brasil. "Eu saio daqui esta noite extremamente recompensado por tudo que vi e por, mais uma vez, acreditar que aqui está sendo lançada a pedra fundamental para aquilo que eu considero que é o destino manifesto do nosso País: ser a maior e mais próspera democracia liberal ao sul do Equador", disse o vice-presidente.

A proposta feita pelos militares reflete uma agenda liberal na economia e conservadora nos costumes e adota discurso contra o "globalismo", que seria "um movimento internacionalista, cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente, para dominá-la; determinar, dirigir e controlar, tanto as relações internacionais, quanto as dos cidadãos entre si, por meio de intervenções e decretos autoritários". Para eles, "os cidadãos brasileiros, em sua maior parte, identificam-se como conservadores evolucionistas, no campo psicossocial, e liberais, porém, conscientes da responsabilidade social de apoiar, com políticas públicas sustentáveis, as camadas carentes da sociedade".

O documento possui propostas como o pagamento pelo uso do Sistema Único de Saúde (SUS) e das universidades públicas. Ele prevê que cidadãos com renda familiar maior do que três salários mínimos paguem pelas aulas nas universidades públicas e pelo atendimento no SUS a partir de 2025.

Está claro, portanto, que os militares possuem uma visão de mundo que desejam implementar no país e atuarão para que ela seja realizada. Afinal, essa é a sua "vocação". Diante disso, é preciso que, não apenas o próximo governo, mas toda a sociedade se mobilize no sentido de colocar os militares novamente nos seus lugares fora da esfera de atuação política. Sem um amplo apoio de diversos setores, será difícil fazer com que os fardados se restrinjam a cumprir as funções que deveriam.

Em seu livro, Victor revela que os petistas acreditam que não há condições e que não seria o momento de modificar essa tutela exercida pelas Forças Armadas. Porém, não pode ser considerada uma democracia um regime em que as FA são personagens constantes da vida política do país, seja com cargos em governos, nos legislativos, fazendo política nos corredores ou aparecendo em matérias da imprensa.

O Brasil precisa responder se deseja um sistema político em que somos tutelados por uma categoria intocável que ameaça as instituições a qualquer gesto para limitar seus privilégios.

* Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP