Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Bolsonaro vitimizado é protagonista do roteiro do golpe
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* Vinícius Rodrigues Vieira
Após perder Paulo José e Tarcísio Meira na mesma semana, o Brasil acaba de ganhar um novo ator: Jair Bolsonaro. Seu papel: vítima das instituições supostamente comunistas que trabalham contra a pátria. Enfim, ele é o mocinho que, em nome de uma noção de democracia achada na rua, deverá nos salvar dos tentáculos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em seus sonhos nas noites mal-dormidas do Alvorada, Bolsonaro deve se ver como Super-Homem (vestido nas cores originais, claro, em homenagem a Trump e ao grande irmão do norte). Por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes, com sua careca lustrosa, plagia Lex Luthor, conforme certa vez noticiou o Piauí Herald. A criptonita é a Constituição em sua integralidade -- uma ofensa para nosso Super-Homem, que, vindo de outro planeta, entende que o artigo 142 lhe assegura a possibilidade de intervir pontualmente em outros poderes, tal como dito várias vezes por integrantes do governo, a última vez na última segunda-feira, pelo general Augusto Heleno.
Como o Super-Homem original, Bolsonaro tem dupla identidade. Mais esperto que Clark Kent, porém, não se aventurou no jornalismo. Aliás, sorte a dele ter tido notas baixas em português em Agulhas Negras, porque, assim, se livrou de passar perrengues ao fim de cada mês -- melhor ser político e complementar a renda com rachadinhas do que perder a saúde física e mental numa redação.
O presidente ora encarna Jair Messias Bolsonaro, democraticamente eleito Chefe de Estado e de Governo da República Federativa do Brasil, sob a promessa de cumprir a Carta Magna e assegurar nossa independência. Em outros momentos, Jair vira o falso Messias, um protoditador que nos envergonha perante o mundo ao agir com se estivesse numa república bananeira.
Há quem ainda ache que Bolsonaro é um Renato Villar, tido por muitos como o personagem que consolidou de vez o status de Tarcísio Meira como um dos maiores atores da nossa teledramaturgia. Na novela Roda de Fogo, de 1986, Villar é um empresário inescrupuloso e frio cuja esposa, Carolina (interpretada por Renata Sorrah), quer fazê-lo presidente da República.
Tudo muda na vida de Villar quando ele descobre que tem apenas seis meses de vida. O vilão passa a ser mocinho, corrigindo seus erros. Apaixona-se pela mocinha, a juíza Lúcia Brandão (vivida por Bruna Lombardi), que tinha em suas mãos um caso que incriminava Villar. Em meio à transformação do personagem, o público passou a reivindicar que, diferentemente do previsto na sinopse da novela, ele não morresse no final.
Villar, porém, cumpre seu destino. Na vida real, o destino de um presidente, claro, não deve ser a morte, mas a finalização de seu mandato à luz da Constituição. No entanto, à diferença do que diz, Bolsonaro há muito situa-se fora das quatro linhas dela -- a gestão da pandemia é evidência inequívoca disse. Para a direita, sua Lúcia Brandão poderia ter sido Sergio Moro, que largou a magistratura para se "casar" com um governo de ultradireita. Depois que Bolsonaro/Villar insistiu em tantos malfeitos, Lúcia/Moro abandonou-o, porém.
Que o presidente ainda possua tanta gente defendendo sua sobrevida política não surpreende num país onde as palavras cidadania e solidariedade constam apenas no dicionário. Porém, causou espécie o fato de que Bolsonaro foi filmado ao som do tema de Missão Impossível enquanto assistia à Operação Formosa, treinamento militar cujos tanque protagonizaram a parada de 10 de agosto na praça dos Três Poderes. Nem mesmo o mais canastrão dos atores se prestaria a tal papel.
Se a política contemporânea é essencialmente performance, estamos mal servidos. Bolsonaro sequer ganharia um Framboesa de Ouro, honraria dispensada aos piores do cinema americano. A política, todavia, é o cerne da vida, gostemos ou não. Nesse roteiro, o presidente assume cada vez mais o papel de vítima.
Muito provavelmente o Senado negará qualquer pedido de impeachment de ministros do STF pela falta de base jurídica, colocando, assim, mais um paralelepípedo na dolorosa via que nos conduz a uma situação em que Bolsonaro aparecerá não como o motivador de uma ruptura, como ele mesmo diz, mas como mero mocinho que aperta o gatilho para defender a si e a todos.
Resta-nos pensar em estratégias para evitar que a democracia não tenha o mesmo destino de Renato Villar: a morte inevitável, os dias contados. Se trabalhássemos pela República com a mesma intensidade com a qual toleramos os vilões pretensamente arrependidos, não teríamos chegado a esta roda de fogo.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e leciona na FAAP e em cursos MBA da FGV.
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