Topo

Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Em debate econômico pós-Bolsonaro, candidatos ignoram política externa

22.dez.2021 - O ex-presidente Lula (PT) em evento com catadores na Quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo - Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo
22.dez.2021 - O ex-presidente Lula (PT) em evento com catadores na Quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo Imagem: Roberto Casimiro/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

07/01/2022 11h43

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

* Vinícius Rodrigues Vieira

Não há saída para a crise político-econômica brasileira sem a devida revisão da política externa do presidente Jair Bolsonaro (PL). Por isso, causa preocupação que os assessores econômicos dos pré-candidatos Ciro Gomes (PDT), João Doria (PSDB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Sergio Moro (Podemos) tenham ignorado, em grande parte, as relações internacionais do Brasil e o cenário global pós-covid na série de artigos que publicaram entre segunda e quinta-feira da primeira semana de janeiro na Folha. Convidado, o ministro da Economia Paulo Guedes se recusou a participar representando o atual inquilino do Planalto.

Conselheiro econômico de Moro, Affonso Celso Pastore tocou na questão externa de maneira indireta, ao mencionar que o agronegócio brasileiro enfrenta limitações em virtude da destruição da Amazônia. Assim, caberia ao Brasil reassumir liderança na agenda climática. Mas basta apenas isso para resolver as questões de política exterior relacionadas ao desenvolvimento? Como devemos nos posicionar em política comercial num mundo cada vez mais protecionista e no qual o multilateralismo da Organização Mundial de Comércio (OMC) já se encontrava em franco declínio desde antes a pandemia?

Nelson Marconi, que assessora Ciro Gomes, lembra que nos últimos 40 anos nos afastamos da trajetória de desenvolvimento de potências industriais asiáticas como China e Coreia do Sul e sugere que devemos buscar sofisticação tecnológica em nossa matriz econômica. Mas seria possível modificar estruturalmente a economia brasileira num mundo em que a divisão internacional de trabalho parece consolidada em grande parte, com o Leste Asiático atuando como o grande provedor de manufaturas tanto para o Sul Global quanto para as economias do Norte? Essa divisão de tarefas em escala global, na qual o Brasil voltou a ser predominantemente exportador de produtos primários, pode ser alterada?

Henrique Meirelles, que coordena a equipe econômica de João Doria, oferece uma potencial resposta a essa última questão ao escrever que "precisamos promover acordos comerciais com países estratégicos e ampliar a representação comercial nas principais regiões do mundo". O espaço concedido pela Folha aos artigos é relativamente limitado, mas, ainda assim, cabe perguntar: quais são esses países estratégicos e principais regiões? Vale a pena entrar em acordos para reforçar apenas as vantagens comparativas do agro? Como fica o Mercosul nesse cenário, isso para não citar o acordo do bloco com a União Europeia (UE), desprezado por Bolsonaro depois de 20 anos de negociação?

Guido Mantega, escolhido pela campanha de Lula para representar o candidato no debate, ecoou em parte as teses perseguidas por Marconi, como a necessidade de investir mais em produção de maior valor agregado. Também menciona a questão climática, embora de modo menos explícito que Pastore. Assinala, de modo preciso, que (na prática) o neoliberalismo está morto. Porém, cabe retomar o modelo fracassado da Nova Matriz Econômica? Qual deve ser o peso do capital externo e o papel do Estado ao reindustrializar o Brasil num mundo em que o eixo econômico já parece ter se deslocado do Atlântico para o Pacífico?

Seguem quatro teses pontuais que buscam, ainda que de modo superficial, contribuir para incluir a dimensão externa no debate da reconstrução político-econômica nacional:

1) Busca por efetivar o acordo Mercosul-UE, sinalizando para Bruxelas que a questão ambiental será levada a sério, mas sem satisfazer as pressões europeias que usam a questão climática como instrumento protecionista. Simultaneamente, precisamos de uma estratégia que explore instrumentos do acordo que permitam atrair investimentos europeus na área industrial, algo que terá apelo no mundo pós-pandêmico, no qual a União Europeia deve buscar depender menos das cadeias globais de valor concentradas na Ásia, em especial a China.

No médio e no longo prazo, tal atração de investimentos poderia contribuir para revitalizar o comércio com a Argentina -- que também receberia investimentos industriais nesse contexto -- e, portanto, com o próprio Mercosul. Ademais, neutralizaríamos progressivamente a dependência da China via agro e, consequentemente, o peso da direita arcaica na política interna.

2) Adoção de estratégia similar com Washington, mas sem um acordo de livre-comércio. Desde o início da guerra comercial com a China, abriu-se um flanco para voltarmos a ser competitivos na exportação de manufaturas de baixo valor agregado para o mercado americano. Não se pode descartar, nesse processo, o aproveitamento dos canais abertos pela proximidade Trump-Bolsonaro e o subsequente desejo do democrata Joe Biden de manter o Brasil na órbita de Washington, no contexto da disputa com Pequim por influência na América Latina.

3) Barganha por mais investimentos chineses em infraestrutura, mas não apenas em território brasileiro, incluindo também a América do Sul, tendo como prioridade o estabelecimento de uma ligação ferroviária entre o Atlântico e o Pacífico. Num primeiro momento, essa aparenta ser uma estratégia direcionada aos interesses econômicos do setor agroexportador. Porém, a melhoria das conexões de transporte com a América Andina poderia facilitar o escoamento das manufaturas do Mercosul para os países da costa do Pacífico.

Seria, portanto, a revitalização da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), lançada sob a liderança do Brasil no fim do governo Fernando Henrique Cardoso e institucionalizada junto à União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) durante os governos do PT. A organização, porém, foi extinta na prática durante o breve domínio dos governos à direita na América do Sul, no fim da década passada. O projeto de integração regional deve ser relançado à luz das necessidades de desenvolvimento dos países sul-americanos, mas sem ignorar a disputa de poder entre China, Estados Unidos e União Europeia e, logicamente, os benefícios que ela pode nos trazer na área econômica.

4) Aproximação com a Índia, país com o qual temos laços históricos na diplomacia comercial e que compartilha o interesse de se contrapor à China na esfera regional e também nos BRICS. O Mercosul já dispõe de um acordo comercial bastante restrito com Nova Déli. Caberia reformulá-lo para incentivar as trocas tecnológicas e no setor de investimentos, em particular em serviços tecnológicos.

Com boas relações com os principais polos de poder do Sul Global (inclusive no mundo árabe-muçulmano) e com crescente abertura ao capital externo, o mercado indiano pode servir de hub para nossa expansão no arco formado pelo Oceano Índico, cobrindo África do Sul e toda a África Oriental, passando pelo Golfo Pérsico, Sudeste Asiático e Austrália.

Falta combinar com os russos, diria Garrincha, tal como na Copa de 1958. Sem problemas: por puro pragmatismo geopolítico, mantenham, caros candidatos, planos para manter uma proximidade saudável com Vladimir Putin e, assim, manter a Venezuela -- nosso principal problema na região -- sob relativo controle.

A esquerda deve criticar a proposta de reindustrialização com potencial ajuda europeia. A direita, por sua vez, possui claros problemas com a integração sul-americana, ainda mais depois que um de seus candidatos contribuiu para que o bebê fosse jogado fora com a água do banho ao, sob a égide do lavajatismo, desestruturar as construtoras que eram parte do soft power brasileiro na região.

A alternativa a essas propostas é continuar a exportar grãos para alimentar o gado votante nas pastagens nacionais. Outro nome para isso é suicídio político-econômico e, portanto, a renúncia à nossa relevância no mundo e até mesmo à existência da nação.

Se continuarmos a pensar o Brasil como uma ilha isolada do mundo, corremos o risco de virarmos um arquipélago de nações rivais, onde impera o divisionismo não apenas entre classes, etnias, raças e religiões. Com o Sul e o Centro-Oeste excessivamente bolsonaristas e dependentes do agro, o Sudeste se desindustrializando junto com poucos polos regionais, o Nordeste empobrecido e o Norte ambientalmente devastado, não sei se nossos descendentes terão a felicidade de comemorar o terceiro centenário de independência em 2122.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.