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Disputa entre Justiça e militares expõe briga por Poder Moderador

Jair Bolsonaro na cerimônia de transmissão de cargo a Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira no Ministério da Defesa - Alan Santos/Presidência da República
Jair Bolsonaro na cerimônia de transmissão de cargo a Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira no Ministério da Defesa Imagem: Alan Santos/Presidência da República

Colunista do UOL

25/04/2022 17h29

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* Vinícius Rodrigues Vieira

A política brasileira tem uma tara que atende pelo nome de Poder Moderador. Na falta de um ator que seja oficialmente o árbitro das disputas políticas no país, tal papel é objeto de disputa praticamente constante desde o fim do Império, durante o qual o monarca tinha por direito exercer essa função.

Na República Velha, as oligarquias se moderavam sob um manto liberal porém antidemocrático — ou seja, antipovo. A Revolução de 1930 pavimentou um ciclo de meio século em que os militares eram de fato os juízes do jogo — fosse ele democrático, como entre 1946 e 1964, fosse ele autoritário, no Estado Novo e na ditadura militar. A Nova República, com a Constituição de 1988, coloca o Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Carta Magna e, portanto, dos limites do jogo democrático, papel exercido sobretudo via Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sempre presidido por um ministro da corte superior do país.

Aos olhos de conservadores e, sobretudo, reacionários, o problema não reside no fato de o STF e, por tabela, o TSE fazerem política em temas em que o Legislativo e o Executivo ignoram as pressões da sociedade. A questão que leva a direita brasileira a contestar a Justiça é o papel por ela desempenhado na extensão de direitos a minorias, como, por exemplo, no reconhecimento do casamento homoafetivo e na proteção de terras indígenas e quilombolas.

O sistema de votação eletrônico e, portanto, o TSE só entram no pacote de contestações do rebanho representado pela tríade Bala-Boi-Bíblia por obra do mau militar Jair Messias Bolsonaro, atual presidente da República. Caso ele não seja reeleito, a direita — na qual é impossível deixar de incluir o alto-comando militar — perderá uma chance única de fazer do STF seu cercadinho para converter em interpretação legal o direito de oprimir minorias e, assim, sepultar de vez a Nova República.

Justiça boa é aquela que interpreta a lei para favorecer os amigos e abre espaço para aniquilar politica e fisicamente os inimigos: eis a máxima do bolsonarismo que, encampado pelos sucessores de Caxias, impõe sua espada contra cidadãos percebidos como membros de uma suposta quinta-coluna que remete, do ponto de vista militar, à ameaça comunista da Guerra Fria.

Morto-vivo, o regime de 1985, que ganhou forma definitiva em 1988 com a Constituição vigente, somente persiste porque, entre erros e acertos, o STF consagra em suas decisões o princípio basilar da democracia liberal: a maioria não pode esmagar a minoria. Pode não ser mais o caso se Bolsonaro conseguir mais quatro anos de mandato e, assim, indicar pelo menos dois ministros àquela Corte.

Enquanto o grande dia não vem, as Forças Armadas tentam à força arrogar-se o papel de Poder Moderador. Foi assim quando o general Villas Bôas, na prática, impediu a candidatura de Lula em 2018 ao lançar um tuíte que direcionou o julgamento da prisão do petista no STF.

Lula foi solto e lidera as pesquisas. A ponta da espada, portanto, perdeu brilho, mas não a capacidade de corte. Na sua mira, na prática, está o coração da democracia dos quase últimos 40 anos, encarnada no dueto eleições diretas para presidente e limitação do poder do Estado sobre o indivíduo. Mais que bolsonaristas, os militares querem a todo custo consolidar seu papel como Poder Moderador redivivo. Sabem que, com Lula ou um eventual candidato do centro democrático, a tendência seria voltar a bater continência para o poder civil.

Nesse contexto é que deve ser entendida a troca de farpas entre o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, e o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira. As togas têm respingos de lama, mas em seus ombros não repousam as manchas de sangue dos torturados pelo regime de 1964, nem as lágrimas dos familiares dos mortos na pandemia que levou não quem Deus quis, mas aqueles que o bolsonarismo e seus cúmplices deixaram à própria sorte sem vacinas nem oxigênio.

Quem modera a democracia é o povo à luz da Constituição por ele promulgada. O resto nem devia ser discutido. Apenas o fazemos porque as vivandeiras voltaram a bater à porta dos quartéis dos militares, que, de bom grado, parecem querer arriscar-se a sujar suas fardas.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.