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OPINIÃO

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Com PEC, Bolsonaro quer discurso da esperança junto com medo do PT

Bolsonaro, Ramos e Barros com o relator da PEC Emergencial na Câmara - Reprodução/twitter Ricardo Barros
Bolsonaro, Ramos e Barros com o relator da PEC Emergencial na Câmara Imagem: Reprodução/twitter Ricardo Barros

Colunista do UOL

12/07/2022 18h21

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Thatiane Moreira*

Depois de apostar tanto no medo, na criação de inimigos, a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro busca desesperadamente mobilizar a esperança. O presidente brasileiro e seus articuladores políticos perceberam que o sonho da reeleição tendia a morrer na praia, e um dos motivos principais estava claro: os fantasmas que assombram as classes ricas não são os mesmos que perturbam o sono das classes pobres, preocupados mais com a sobrevivência do que com o Fórum de São Paulo. Daí a importância de mobilizar esperanças, daí a urgência da PEC dos benefícios.

Se engana, no entanto, quem acha que o medo perdeu vez na estratégia do atual chefe do executivo. A mobilização de medos marca e vai continuar a marcar presença cotidiana nas falas do presidente e seus apoiadores, dentro e fora dos meios digitais. Seguindo a linha de 2018, a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro dificilmente abandonará a mobilização de temores históricos em relação às crises econômicas, acompanhado de uma combinação de uma alegada "ameaça comunista" e a necessidade de uma cruzada moral "antigênero", reunindo, assim, apoio na oposição ao Partido dos Trabalhadores.

Há na mobilização de medos um processo de simplificação dos problemas sociais, econômicos e culturais vividos no Brasil, essenciais para a difusão das narrativas bolsonaristas. Através desta simplificação, são criados "bodes expiatórios", que servem para nortear a percepção sobre os culpados e as prováveis soluções para os problemas postos.

Para que a simplificação ganhe legitimidade, isto é, para que as explicações propostas ganhem adeptos, há o uso de algumas estratégias: a) a autoridade, quando especialistas comentam o assunto (médicos falando sobre a ineficácia das vacinas); b) a racionalidade, que diz respeito ao uso de resultados de pesquisas supostamente "científicas"; c) a moral, que se refere à presença de justificativas e argumentos que se apoiam nos valores tradicionais; d) a mitopoiesis, que diz respeito a criação de grandes estruturas narrativas, que procuram mostrar que há um encadeamento lógico nos fatos observados, e que sempre há algo oculto, que precisa ser desvelado.

A mobilização de medos mantém uma relação circular com a construção de inimigos. Peguemos o pleito eleitoral de 2018: Muito se falava sobre o PT, havia várias explicações para colocá-lo como inimigo, e todas permeavam, em menor ou mair grau, ou decorriam da noção de corrupção. Ter um tema aglutinador era essencial, porque importava menos que as pessoas acreditassem em tudo que era posto contra o PT, o ponto que importava era entender o PT com inimigo e, por isso, era primordial construir uma resposta simples para a pergunta: Por que o PT é nosso inimigo? Resposta: Por que ele é corrupto. A partir desta resposta derivavam várias outras explicações, que circulavam em maior ou menor grau no meio digital, a depender do grupo em questão (militares, evangélicos, liberais, entre outros).
E o tema da corrupção era relevante para o momento, afinal estava ligada ao contexto político-social permeado pelas investigações da Lava Jato.

Em 2022, o tema da corrupção perdeu relevância (sem deixar de ser importante). E emergiu o tema da liberdade. Agora, a pergunta inicial ganha uma nova resposta: Por que o PT é inimigo? Por que ele é autoritário. Em 2018, o confronto era entre o sistema corrupto e os antissistema (sistema corrupto x cidadão de bem). Em 2022, o discurso antissistêmico continua, mas a batalha será entre os defensores da liberdade (patriotas/bem) contra os autoritários (progressistas/mal), afinal o contexto político-social mudou, e não há mais espaço para colocar Bolsonaro como alguém totalmente fora do sistema. Há aqui uma ideia de que a "verdadeira liberdade" estaria fora do sistema político, por isso não caberia às instituições democráticas garanti-la, seriam os "patriotas' que deveriam defendê-la.

O bolsonarismo, portanto, opera a partir de temas aglutinadores, essenciais para o processo de simplificação das soluções. E, neste suposto contexto de manipulação, de risco aos valores tradicionais, de ameaça às liberdades, de ataques à democracia, de usurpação do futuro das novas gerações, fortalece-se a percepção de que a solução seria a manutenção de Jair Bolsonaro no poder.

Mas fortalece a percepção de quem?

Mesmo que o bolsonarismo possa ser entendido como um fenômeno interclasse, vez que é composto por matrizes discursivas (militarismo, empreendedorismo, discurso anticorrupção, conservadorismo de costumes, entre outros) que não estão circunscritas a nenhuma classe ou setor social específico, fazendo-se presentes em menor ou maior grau e de modos diversos em diferentes grupos, a mobilização de medos não dialoga do mesmo modo com todas as parcelas do bolsonarismo e, muito menos, com todos os eleitores de Jair Bolsonaro.

O medo do PT, do progressismo, do comunismo, fundamentados principalmente no discurso meritocrático e de perda do exclusivismo se concentram nas classes mais abastadas da população brasileira. Enquanto as classes mais baixas, em geral, não temem o PT, mesmo que parte tenha se decepcionado com os governos do Partido dos Trabalhadores.

Assim, há matrizes discursivas dentro do bolsonarismo e dentre os eleitores de Jair Bolsonaro que seriam mais restritas a uma classe ou grupo social determinado, por exemplo, o anticomunismo e o liberalismo econômico, que predominam entre as classes médias e altas, e se propagam de maneira coordenada, por exemplo, por meio de think tanks. Nas matrizes discursivas elitizadas gera-se um maior engajamento político ao se falar do medo da "volta" do comunismo, do fim das liberdades individuais e da tentativa de reenquadrar a oposição às políticas redistributivas não como ressentimento ou preconceito de classe, mas como uma luta legitima contra a tirania da esquerda. E nas classes mais baixas?

A inclusão financeira promovida pelos governos Lula se caracterizava, por um lado, por um processo subjetivo profundo, em que a histórica invisibilidade dos "subalternos" se transmutava em orgulho e autoestima, tanto no nível individual como de classe e, por outro, a sociedade continuava a escancarar o "não", atualizando os marcadores simbólicos da diferença, além do consumo ter se mostrar insustentável no longo prazo. Depois, ainda tivemos a consequente agenda de austeridade adotada por Michel Temer, que aumentou a sensação de desamparo social.

A perda de protagonismo social e a sensação de uma crise nacional foram alguns dos fatores que levaram parte da classe mais baixa a ver nos valores de "pulso", "ordem", disciplina", "mão forte" e "autoridade", propagados pelo então candidato Jair Bolsonaro, o caminho para voltarem a pagar suas dívidas, alimentar seus filhos, a ter mais segurança para sua família. Havia, sim, uma decepção com o PT, marcada principalmente pelo tema da corrupção, mas a esperança de uma possível melhora foi um afeto que não pode ser ignorado.

Enquanto o medo se mostrou em 2018 e, ainda aparece, como um afeto potente nas classes mais ricas, o misto entre esperança (de sobrevivência mais digna) e o ódio (pelas constantes humilhações e invisibilidades) continuam formando um amálgama pujante nas classes mais baixas. É o encontro entre aqueles que desistiram de esperar pelas promessas democratizantes da modernidade e aqueles que não estão nem mais nominalmente interessados em promovê-las, a PEC dos benefícios vem como uma tentativa de resgatar minimamente a esperança dos primeiros no governo.

E, parece que há espaço para a ampliação da esperança. Segundo a última pesquisa Quaest, 10% dos eleitores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disseram que a redução do ICMS e a criação de subsídio para caminhoneiros, por meio da PEC dos Benefícios, aumentariam a chance de eles mudarem o voto para Bolsonaro. Além disso, 42% dos entrevistados disseram que o atual presidente brasileiro está fazendo o que pode para impedir o aumento dos preços dos combustíveis. A pesquisa ainda mostrou que a aversão ao chefe do executivo reduziu 7 pontos percentuais desde janeiro: caiu de 66% para 59%.

Um dos pontos que as pesquisas eleitorais têm nos mostrado é que a prevalência do medo frente a esperança não tem alavancado suficientemente a campanha do atual presidente da república. A PEC dos benefícios parece ser a boia salva vidas. Resta saber qual o alcance eleitoral desta PEC, afinal, uma boia salva vidas serve para recompor o folego e não afundar, o que ajuda, mas não garante que se terá braço suficiente para chegar na frente dos demais competidores. Principalmente, quando já se está atrás.

*Thatiane Moreira é mestranda em Ciência Política pela Unicamp