Topo

Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com intolerância religiosa, Bolsonaro nega o Brasil e a República

Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro - Isac Nóbrega/PR
Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro Imagem: Isac Nóbrega/PR

Colunista do UOL

10/08/2022 18h29

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

* Vinícius Rodrigues Vieira

Negar o Brasil. Eis a essência do bolsonarismo, que, conforme detalhado em colunas anteriores, enxerga a pátria como um país essencialmente ocidental e cristão, em que elementos culturais africanos e indígenas seriam secundários. Num contexto de ascensão evangélica, trata-se de uma estratégia promissora de cativar fatias do eleitorado cruciais para tornar competitiva a sua campanha de reeleição ao Planalto.

Inevitável concluir, porém, que, caso as forças políticas tradicionais — notadamente o duopólio PT-PSDB que dominou as eleições presidenciais entre 1994 e 2014 — tivessem sido mais sensíveis às demandas de evangélicos, dificilmente o presidente Jair Bolsonaro teria vencido em 2018. Isso porque cerca de 70% dos eleitores que se definem como integrantes desse grupo religioso optaram pelo capitão contra o petista Fernando Haddad no segundo turno.

Nesse sentido, cabe perguntar: não teria o campo democrático caído numa contradição ao dizer valorizar o sincretismo cultural-religioso e, no entanto, ter ignorado o crescimento e consolidação da nação evangélica? Em parte, sim. Todavia, seria desonestidade intelectual concluir que a face mais visível do protestantismo contemporâneo no Brasil, formada sobretudo por igrejas e líderes com projeção midiática, seja adepta de noções republicanas, como a separação entre religião e estado e o respeito à fé alheia.

Como esquecer o chute de um pastor da Universal, em 1995, contra uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil para os católicos? Como ignorar a destruição de terreiros por traficantes de Cristo, num modus operandi que faz com que esses marginais sejam, de fato, milicianos religiosos?

No fundo, os pastores que se arvoram nas estruturas estatais bebem puro suco de Brasil. Negam, sim, nossas origens históricas desde o ponto de vista identitário, mas replicam o patrimonialismo que, nestas terras, funciona como um pecado original da colonização e, portanto, da invenção do país como Estado e sociedade.

Assim, ao difundir um vídeo em que Lula aparece ao lado de praticantes de cultos afro-brasileiros e afirmando que o ex-presidente e candidato líder nas pesquisas vendeu sua alma ao diabo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro reafirma a falta de limites entre o que é de César (o Estado, em tese público) e aquilo que é de Deus (e, portanto, devia manter-se na esfera privada).

Mais brasileiro que isso, impossível. Michelle condena a fé alheia não por ser ela uma evangélica, mas por pertencer a um grupo político que faz do patrimonialismo uma profissão de fé.

Não que petistas e tucanos tenham afastado esse cálice de si. A profusão de escândalos de corrupção em administrações lideradas pelo PT ou o PSDB sugere que tais partidos ainda estão distantes de se comportar como se espera de lideranças políticas numa República.

Todavia, carece lastro histórico dizer que tais partidos se assemelham ao bolsonarismo no trato da coisa (supostamente) pública, haja vista o desenvolvimento de políticas públicas bem-sucedidas na promoção do desenvolvimento de capacidades individuais essenciais à prática da cidadania nos governos de 1995 a 2016.

Por sua vez, esse movimento político é, na prática, antirrepublicano, pois nega a coisa pública, ao desmantelar políticas públicas de educação e transferência de renda, além de aspectos cruciais de nossa história e identidade nacional, enquanto respalda um Estado paralelo fundamentado em pastores midiáticos, milicianos, latifundiários e apoiadores armados.

A emulação, por parte do bolsonarismo, de bandeiras típicas da direita populista-reacionária-racista e cristã dos Estados Unidos é a maior evidência da negação do Brasil imaginado e gestado ao longo de nosso segundo século de independência: um país secular, orgulhoso de seu sincretismo e, portanto, das raízes africanas e indígenas. Não um simulacro do Ocidente, mas uma civilização original — embora contraditória como todas as outras.

O problema do bolsonarismo, portanto, reside no patrimonialismo e não na religião. Interromper a negação do Brasil pelo presidente e seu grupo político passa pela valorização da diversidade — incluindo até mesmo os segmentos evangélicos hoje refratários à alteridade religiosa.

Ao bolsonarismo, aliás, interessa fomentar uma identidade reativa que reúna os evangélicos contra as elites intelectuais e políticas tradicionais. Impedir a captura política da nação evangélica pela direita reacionária é condição sine qua non para impedir um segundo mandato de Bolsonaro e a continuidade de seu movimento na oposição em caso de derrota em outubro.

Oxalá logremos isso, em nome do sangue de Jesus, sob o manto protetor de sua mãe e as bênçãos de Deus/Olorum, que não se importa com o nome como o chamamos ou se nele cremos, mas censura aqueles e aquelas que pronunciam seu nome sagrado em vão ou para manter o poder neste mundo profano.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.