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OPINIÃO

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PT aposta em 'fascistização' de Ciro para manter hegemonia na esquerda

Ciro Gomes e Lula participam de debate da TV Globo - Reprodução/TV Globo
Ciro Gomes e Lula participam de debate da TV Globo Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

01/10/2022 11h49

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* Raul Galhardi

"Linha auxiliar do bolsonarismo", "Cironaro", "fascista", ou adjetivos que demonstram puramente preconceito contra nordestinos, como "cangaciro" e "coroné". Esses são alguns termos que, de algumas semanas pra cá, vêm sendo atribuídos ao candidato Ciro Gomes (PDT) por militantes petistas e setores da mídia.

Com a intenção de tachar de "fascista" o ex-governador e o seu partido, tentam criar a narrativa de que militantes de extrema -direita estariam se infiltrando na sigla. O jornalista Leandro Demori chegou até a enviar um artigo intitulado "Os antissemitas do PDT" via e-mail para várias pessoas sem a devida autorização delas.

Outra narrativa que procuram criar é a de que existiriam dissidências significativas dentro do PDT que não desejam a candidatura de Ciro. Até uma suposta nota foi plantada na imprensa com a intenção de mostrar rachas dentro da candidatura. Com apenas 17 assinaturas, entre elas de pessoas que nem são filiadas ao partido, o documento conta até com assinaturas falsas, como a que foi atribuída e negada pelo deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE, ex-PDT).

Mais recentemente, criou-se a hashtag "#tiragomes" com o apoio de artistas como Caetano Veloso, que chegou a gravar um vídeo em que afirma que Leonel Brizola dizia que "artista não dá voto, mas tira, então..." e ao final reproduz a hashtag.

Em resposta a essa onda de ataques, Ciro lançou um manifesto nesta semana dizendo que manteria sua candidatura e que "para esconder a culpa da renúncia covarde aos verdadeiros ideais de mudança, muitos se escondem na desculpa de que para governar é necessária uma aliança com as forças do atraso. Para eliminar, na raiz, a diversidade do embate democrático tentam transformá-lo, de forma artificial e prematura, no embate de duas forças que utilizam falsos argumentos morais para se tornarem hegemônicas. Aqueles que ousam resistir - como é nosso caso -, são vítimas das mais violentas campanhas de intimidação, mentiras e de operações de destruição de imagem".

Hegemonia e "combate ao fascismo"

O assassinato de reputações em nome da manutenção de sua hegemonia no campo da esquerda é uma especialidade do PT. Aqueles que o partido não consegue cooptar, entre movimentos sociais como MST e MTST, partidos (PSOL e PSB) e lideranças, como Boulos (PSOL), Freixo (PSB) e Flávio Dino (PSB), ele destrói. Foi o caso de Marina Silva (Rede), assim como o de Marta Suplicy (MDB), Heloísa Helena (Rede), Cristovam Buarque (Cidadania) e agora Ciro Gomes, para citar alguns exemplos.

Enquanto isso, o partido se abraça sem pudores com figuras políticas nefastas, algumas delas que, inclusive, defenderam o impeachment de Dilma Rousseff (PT), como Eunício Oliveira (MDB, para quem Lula pediu votos em vídeo de campanha recente chamando-o de "companheiro Eunício"), Renan Calheiros (MDB), Paulinho da Força (Solidariedade), Geddel Vieira Lima (MDB), e o atual vice de Lula, Geraldo Alckmin (PSB), que chegou a dizer que "Lula é o retrato do PT, partido envolvido em corrupção, sem compromisso com as questões de natureza ética, sem limites".

Devido à sua vocação de "escorpião", que, para cumprir a sua natureza, mata o "sapo" que o carrega pelo lago até a outra margem, o partido rifa seja o que for para manter essa hegemonia. Rifou Dilma buscando se desvincular da catástrofe econômica de seu governo, apostando no "quanto pior, melhor", já que se acreditava que, com a provável má gestão de Michel Temer (MDB), o partido voltaria ao poder em 2018. No entanto, como aquele ano mostrou com a eleição de Bolsonaro, às vezes "quanto pior, pior".

Novamente, em 2018, mesmo sabendo que o antipetismo e o lavajatismo eram os sentimentos que dominavam aquele pleito, a sigla preferiu rifar o Brasil e apostar no "quanto pior, melhor" prevendo a catástrofe que seria o governo Bolsonaro para tentar voltar nos braços do povo em 2022.

A questão é que o principal responsável pela eleição de Bolsonaro foi o próprio PT. Quais foram as causas do surgimento do bolsonarismo? Ele é fruto de uma frustração popular oriunda da má gestão da economia no governo Dilma, mas principalmente da falta de resolução de problemas estruturais históricos do país que impactam de forma decisiva a vida do povo, como serviços públicos de qualidade (transportes, saúde, educação, etc.).

Tudo isso junto aos desvios éticos do partido, que durante muitos anos fez o mesmo discurso moralista "udenista" anticorrupção que hoje critica, e com a midiatização dos escândalos de corrupção, criou o caldo do antipetismo que resultou no bolsonarismo. Ou seja, Bolsonaro é um produto dos erros morais, políticos e econômicos do PT que resultaram em má gestão do país e escândalos inflados pela imprensa.

Agora, em 2022, o partido buscou criar novamente as condições para que disputasse as eleições contra o seu "oponente ideal", Bolsonaro, mesma aposta feita em 2018. Se o atual presidente não existiria se não fosse a grave crise econômica e moral dos governos petistas, por sua vez Lula não sobreviveria politicamente se não fosse a "sangria" constante do catastrófico atual governo.

Manchetes indicam Lula conivente com Bolsonaro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Manchetes indicam Lula conivente com Bolsonaro
Imagem: Arquivo pessoal

É fato que Lula nunca assinou um pedido de impeachment de Bolsonaro e nem participou de manifestações para tirá-lo do poder. Já Ciro assinou vários pedidos de impeachment e denunciou Bolsonaro na Corte Internacional de Haia por charlatanismo durante a pandemia. O PT e Lula inclusive já acenam com a possibilidade de manutenção de Augusto Aras na PGR (Procuradoria-Geral da República) e com a possibilidade de anistia a Bolsonaro, caso seja eleito.

Portanto, se existe alguma linha auxiliar do bolsonarismo no campo da esquerda, ela é o próprio petismo, que o pariu e se retroalimenta com ele desde então. Porém, o PT continua não assumindo seus próprios erros e criando monstros que o engolirão, negando-se a realizar uma autocrítica e, com isso, permanece repetindo seus erros.

O que está em disputa de fato, portanto, é a tentativa de discutir ideias e propostas para o país que realmente promovam as mudanças estruturais necessárias para impedir o retorno do bolsonarismo daqui a quatro anos. Trata-se não apenas de derrotar Bolsonaro, mas de impedir a volta de sua ideologia extremista ao poder.

Porém, o próprio Lula chegou a dizer em mais um de uma ocasião que eleição não é momento de discutir propostas e foge de debates e da disputa de ideias, priorizando uma campanha de destruição de reputação de Ciro e de estigmatização de seus eleitores, o que está se constituindo um "tiro no pé", já que serve mais para afastar os eleitores de Ciro do que conquistar os seus votos, como mostra pesquisa. Movimento semelhante ocorreu anteriormente com a hashtag "#euavisei" em relação aos erros do governo Bolsonaro, quando eleitores de Haddad, ao invés de buscarem recuperar votos de bolsonaristas arrependidos, preferiram tripudiar e provocar essas pessoas.

Segundo esta coluna apurou, o ranço entre petistas e pedetistas está se tornando tão grande que muitos eleitores de Ciro no seu canal oficial do Telegram estão defendendo voto nulo em eventual segundo turno caso o cearense não seja um dos candidatos nessa etapa. Até membros da campanha de Ciro têm defendido o voto nulo entre quatro paredes e dizem que o PDT não deverá compor com o PT após o primeiro turno, principalmente pelo racha ocorrido na disputa ao governo estadual do Ceará.

Por outro lado, essa estratégia petista pode ser apenas mais uma tentativa de se criar um bode expiatório caso o PT saia derrotado, jogando novamente nas costas de Ciro a causa pela derrota petista. Já se prepara novamente o discurso de terceirização da culpa. Afinal, o PT nunca é culpado por nada e a culpa é sempre dos outros: da direita, da mídia, da Lava Jato, dos EUA, de Ciro Gomes, do "pobre de direita que não sabe votar" e por aí vai.

Em 37 anos desde a redemocratização, o Brasil teve dois presidentes impichados (Collor e Dilma), dois presos (Temer e Lula), e um extremista de direita (Bolsonaro). Esses, definitivamente, não são sinais de um sistema político saudável. Os erros do PT no campo ético e político não foram produtos do acaso, mas representam falhas sistêmicas, estruturais, que precisam ser resolvidas.

''Medo de golpe''

Por fim, um dos principais argumentos do PT para defender o "voto útil" em Lula no primeiro turno é o medo de que Bolsonaro dê um golpe caso seja derrotado. Esse pensamento, que aposta no medo como estimulador do voto, não se sustenta, entretanto.

Para que exista um golpe, são necessários, no mínimo, dois elementos: grupos políticos interessados em golpear e condições materiais para que isso ocorra. Esses fatores não estão presentes no Brasil atual.

Primeiramente, representantes do poder econômico, como a Febraban e Fiesp, assinaram manifestos em defesa da democracia e do TSE e a carta em defesa da democracia e do sistema eleitoral elaborada pela Faculdade de Direito da USP alcançou centenas de milhares de assinaturas, entre elas de políticos, magistrados, artistas e também de acionistas de grandes empresas, além de milionários do mercado financeiro, banqueiros e donos de indústrias. Ou seja, não é do interesse do poder econômico dar golpe neste país.

Além disso, é preciso que grupos armados tenham interesse em sustentar um golpe, grupos estes que poderiam ser os militares ou as polícias. Como já discutido em artigos anteriores nesta coluna, os militares já deram o "golpe" com a subida de Bolsonaro ao poder e continuarão no poder, não importa quem seja eleito, com cerca de 8 mil deles loteados na máquina pública federal, número este maior do que a quantidade de fardados presentes no governo durante a ditadura.

Em relação às polícias, pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que 84% dos policiais consideram a democracia a melhor forma de governo. Outras pesquisas anteriores mostravam que, se a PM é dominada por bolsonaristas, o mesmo não pode ser dito das Polícias Civil e Federal, que se dividem em relação ao apoio ao presidente.

Em entrevista a esta coluna, o cientista político Alberto Carlos Almeida também defende que não há risco de golpe no país porque as instituições estariam funcionando, gostemos da forma como funcionam ou não, e por sermos "um país muito complexo, grande, populoso, com uma sociedade civil ativa, uma imprensa independente e redes sociais pujantes", o que torna "a sociedade 'entrincheirada'" e impede que haja um golpe.

Diante do exposto, é importante destacar que Lula e Bolsonaro são pessoas bem diferentes, sendo o primeiro um democrata e o segundo um projeto de ditador. A equivalência entre eles não se dá no campo de defesa das instituições, mas na área econômica e na ausência de projetos que realmente transformem o país resolvendo seus problemas estruturais. Não há aqui, portanto, nenhuma tentativa de equivalência entre as duas figuras, mas a análise de que ambos e aquilo que representam se retroalimentam politicamente.

Entretanto, é necessário que os petistas e a militância do partido tomem cuidado para não reproduzirem os mesmos comportamentos daqueles que condenam. Esse, inclusive, é um desafio constante da esquerda, que precisa estar sempre atenta para não se igualar às práticas que combate.

Afinal, como disse o filósofo Friedrich Nietzsche, "aquele que luta contra monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha para o abismo, o abismo também olha para você".

* Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP