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Em defesa da 'liberdade', direita surfa com folga no debate sobre censura

18.out.2022 - O ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, durante sessão plenária do tribunal - LR Moreira/Secom/TSE
18.out.2022 - O ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, durante sessão plenária do tribunal Imagem: LR Moreira/Secom/TSE

Colunista do UOL

24/10/2022 10h22

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* Ivan Paganotti

Após semanas com insólitas discussões sobre satanismo, maçonaria, canibalismo e pedofilia, as redes bolsonaristas têm respirado aliviadas ao levar o debate eleitoral para um de seus campos favoritos: a liberdade de expressão.

Punidos pela remoção de postagens e acuados com retratações, são também premiados por poder reclamar da arbitragem. Como nas partidas políticas, o barulho da torcida pode ser confundido com gol, tentam ganhar no grito, aproveitando os ruídos sobre polêmicas decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e berram por todos os lados que estão sendo silenciados.

Após o TSE tomar atitudes mais incisivas para controlar a desinformação no debate público sobre as eleições, perfis alinhados com o bolsonarismo publicaram postagens em redes sociais com falsos alertas de "comentário removido pelo Tribunal Superior Eleitoral". A agência de checagem Aos Fatos identificou mais de uma centena dessas postagens no Twitter, destacando que não há decisões de remoção como essas.

O pastor e cantor André Valadão também havia postado falsa intimação judicial para retratação. Vídeos compartilhados em aplicativos de mensagem mostrando um homem circulando no estúdio da Jovem Pan como se fosse um fiscal do TSE — um protesto humorístico da emissora contra os direitos de resposta que teve de conceder nessa eleição — foram interpretados como uma censura real por diversos internautas, o que demandou refutação oficial pelo Tribunal.

Na mesma linha, bolsonaristas foram ontem (23) à casa de Roberto Jefferson, ex-deputado preso pela Polícia Federal, gritar frases como "Viemos cobrar. Alexandre imoral não vai nos calar", além dos já conhecidos gritos por "liberdade".

Por que comunicadores bolsonaristas se consideram vítimas de 'censura'?

Isso acontece porque o debate sobre liberdade de expressão atrai, novamente, públicos mais liberais e ganha auxílio indireto da mídia massiva, que repercute o tema. Assim, outros temas indesejados pelos bolsonaristas, como denúncias e críticas, passam naturalmente ao segundo plano, atropelados por outros escândalos. Com a nova polêmica sobre censura, declarações constrangedoras do presidente sobre as jovens venezuelanas foram rapidamente esquecidas, convenientemente trocando de assunto em velocidade vertiginosa.

É a tática da "mangueira de incêndio" [firehose], nas palavras do pesquisador Timothy Gibson, que analisa o uso político de "mentiras, exageros e demagogias" que "fluem como água de uma mangueira" para "atordoar e mesmerizar" e até "distrair e imobilizar - o que é precisamente seu objetivo".

Mas o bolsonarismo inova ao utilizar esse fluxo atordoante pautando a discussão sobre a censura — um termo nem sempre usado com precisão, mas, em alguns casos, justificável — de seus comunicadores. Assim, o debate público não só é levado pela torrente de desinformação, mas acaba sugado para o ralo, atraído pela discussão sobre o que é proibido.

Tentativas de censura, muitas vezes, acabam atraindo mais atenção para o que se procura silenciar. Esse tiro pela culatra é um fenômeno próprio das plataformas digitais, alcunhado de "efeito Streisand" em homenagem à cantora norte-americana que tentou remover fotos de sua casa de praia de um obscuro site. A ameaça de censura atraiu milhões de internautas em defesa da liberdade de expressão. As fotos foram replicadas por todos os cantos, dando fama instantânea para o que a celebridade pretendia ocultar.

Como argumento no livro "Censura, Justiça e Regulação da Mídia na Redemocratização", em que analiso os debates no judiciário sobre casos envolvendo liberdade de expressão nas últimas décadas, essa atração pelo proibido opera como uma "sucção pelo vácuo": a atenção coletiva volta-se para o que se pretende remover, ocupando seu espaço, criando um efeito em cadeia reverso, dando mais notoriedade aos conteúdos polêmicos.

Entretanto, a desinformação eleitoral que circula pelas redes atuais apresenta um dilema distinto, pois muitas já apresentam um impacto considerável, com milhões de replicações. Nesse caso, intervir ou não, removendo o conteúdo problemático, demanda cálculo político mais sofisticado, pois a inação permite que o conteúdo continue a ser replicado, incentivando futura reincidência. Para diminuir o risco de efeitos colaterais adversos, medidas drásticas como a remoção demandariam cautela e autocontenção.

Para os grupos que se apresentam como vítimas da censura, as recentes medidas judiciais de controle comunicacional são vistas como ameaça para suas redes de compartilhamento de postagens partidárias, o que explica a reação enérgica que fez até quem não foi alvo da justiça se apresentar como tal — um processo de empatia grupal, em que todos se veem como mártires da liberdade de expressão, ecoando ataques contra outros membros do grupo.

Essa acaba sendo, ao mesmo tempo, uma oportunidade para fomentar o desgaste contra a cúpula da justiça brasileira, retratando-a como autoritária ou arbitrária. Como o poder judiciário tem imposto derrotas ao executivo nos últimos anos, seu enfraquecimento faz parte do projeto político bolsonarista em ameaças como a alteração da composição do Supremo Tribunal Federal.

Após críticas pelo descontrole da desinformação online em 2018, a atuação incisiva da atual composição do TSE pretende responder afirmativamente a quem questiona se as instituições estão funcionando — uma dúvida que já se torna um problema só por ser formulada com tanta frequência.

Resta saber, na verdade, se as instituições ainda funcionam institucionalmente. Apesar do apoio colegiado no TSE, a falta de consenso ao redor das decisões judiciais nas eleições sinaliza uma resposta difícil para esse novo questionamento.

Em países como Hungria e Polônia, lideranças autoritárias tiveram mais espaço para erodir as instituições democráticas em seu segundo mandado. Em outros países, como nos Estados Unidos, tentou-se reverter esse processo por meio da alternância de poder. Por aqui, é legítimo o esforço judicial para evitar essa erosão institucional, procurando garantir que o debate eleitoral seja mantido com algum decoro e embasamento com a realidade.

Garantir o direito de resposta em campanhas partidárias ou em veículos midiáticos é uma dessas medidas legítimas, escorado na legislação atual e na ética jornalística. Demandar maior empenho e velocidade das redes sociais para remover conteúdos também encontra fundamentação na legislação atual, ainda que a censura de informações falsas ou descontextualizadas possa ser questionável eticamente — e politicamente, como lembra o efeito Streisand.

O ministro Alexandre de Moraes, atual presidente do TSE, deve lembrar-se bem de sua experiência em outro caso de remoção de conteúdos falsos durante a problemática censura da revista Crusoé em 2019, revertida pelo STF após se descobrir que o relato supostamente "fraudulento" dos jornalistas era baseado em documentos judiciais.

Aos que apoiam a liderança do Tribunal em busca de controlar a "desordem informacional" nas eleições, não podemos esquecer que, seguindo a tradição da corte, em 2026, o tribunal pode contar com os ministros André Mendonça ou Nunes Marques na sua presidência.

Nas mãos de quem já abriu investigação contra colunistas por críticas ao atual presidente da República, as normas do TSE podem se voltar também contra outros veículos da imprensa, vistos como incômodos. A indefinição conceitual do que é ou não "desordem informacional" ou "manipulação de premissas verdadeiras", para usar expressões dos ministros do TSE, pode acabar incluindo veículos de imprensa que publiquem opiniões incômodas ou verdades inconvenientes.

Donald Trump e Jair Bolsonaro já classificaram a imprensa crítica como "fake news". Nos Estados Unidos, entretanto, a limitação legal para intervenção sobre a mídia evitou que as represálias fossem além da disputa discursiva.

Já no Brasil, uma jurisprudência que permita censurar reportagens ou artigos com "conclusão falsa" a partir de "premissas verdadeiras" nas "mídias tradicionais" pode ser um instrumento bastante conveniente para grupos autoritários nos próximos anos, que poderão evitar o desgaste de criar novas práticas de controle, simplesmente se aproveitando das que foram criadas originalmente para combatê-los.

* Ivan Paganotti é professor da Universidade Metodista de São Paulo, doutor em ciências da comunicação pela USP e autor do livro "Censura, Justiça e Regulação da Mídia na Redemocratização" (Appris, 2021).