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Nas urnas, Brasil decide se quer ser Macunaíma ou Jeca Tatu
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* Vinícius Rodrigues Vieira
Muito se diz sobre o caráter plebiscitário da eleição presidencial de hoje (30): democracia com a frente ampla de Lula versus a autocracia com Bolsonaro. Uma análise mais detalhada, porém, sugere que aqueles que vão às urnas neste domingo darão o veredito final sobre o Brasil dos últimos 100 anos: seremos um país que busca o desenvolvimento e alguma forma de inclusão ou voltaremos de vez à era colonial, agroexportadora e de face exclusivamente cristã, com ecos de supremacia racial branca?
No primeiro centenário da independência, o Brasil foi sacudido por significantes transformações nos campos cultural, social, econômico e, portanto, político. A Semana de Arte Moderna sintetizou a necessidade de construirmos uma identidade cultural própria, independentemente dos modelos europeus. Beberíamos das várias civilizações que nos formaram. Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, tornou-se nossa síntese, como já escrevi neste espaço.
Estamos, porém, muito além de escolhas acerca de nossa identidade: em 30 de outubro, vamos optar, também, por diferentes trajetórias de desenvolvimento. Há 100 anos, na sociedade e na economia, a ascensão de novos estratos, como os militares de baixa patente, operários —sobretudo os de origem estrangeira — agitaram a República do Café com Leite com greves e revoltas. A Crise de 29 foi a pá de cal na ordem vigente ao colocar em xeque a ordem agroexportadora fundamentada na produção de café.
Assim, a mistura de tenentismo, elogio ao sincretismo e à mestiçagem e industrialização moldou a face do Brasil do século 20, que prevaleceu sob períodos democráticos e autoritários. Por exemplo, o Vargas ditador do Estado Novo ofereceu às classes urbanas a Consolidação das Leis do Trabalho. Por sua vez, a ditadura militar arrochou, sim, os salários na mesma lógica pretendida agora pelo bolsonarista Paulo Guedes, mas implementou a aposentadoria dos trabalhadores rurais e criou o Fundo de Garantia. FHC e Lula desenvolveram os programas de transferência de renda.
Na identidade cultural, o positivismo dos tenentes — alguns dos quais chegaram ao poder na ditadura, como Ernesto Geisel — pavimentou o caminho para um secularismo envergonhado. O agnóstico Vargas fez de Nossa Senhora Aparecida a padroeira do Brasil. O elogio à mestiçagem e ao sincretismo varreu do discurso público as noções de eugenia que encontram eco mesmo nestas terras morenas no começo do século 20.
Todas essas tendências foram encapsuladas no conceito de democracia racial. Muito convenientemente, porém, a sociedade e o Estado — em particular durante a ditadura — tomaram aquela noção como evidência de que não havia mais racismo no Brasil, algo que obviamente não corresponde à realidade.
Com a redemocratização, ganhou força graças à ação do movimento negro uma difusa noção de diversidade, semelhante ao multiculturalismo difundido a partir dos Estados Unidos nos anos 1960. A repercussão desse discurso encontra-se além do campo cultural, fundamentando a lógica de reparação histórica das ações afirmativas nas universidades, serviço público e iniciativa privada.
Se o pós-ditadura testemunhou um declínio da indústria na economia à medida que nos inseríamos na globalização, foi somente após o impeachment de Dilma Rousseff (PT) que abandonamos qualquer forma de política industrial. Assim, é inequívoco associar o bolsonarismo ao retorno a uma economia agrário-exportadora, cuja base material é bastante propícia para o ressurgimento de formas de poder arcaicas, distantes de qualquer vestígio de racionalidade.
Exemplo disso é o negacionismo da ciência durante a pandemia, apoiado por militares — que historicamente foram os grandes difusores do positivismo no país — e líderes evangélicos. Nesse sentido, o bolsonarismo opõe-se à ditadura militar, que estruturou o sistema de universidades federais, hoje à mercê da postura anticiência daqueles que detêm o poder. Na política externa, isso se reflete no abandono da diplomacia para o desenvolvimento, substituída por alinhamentos ideológicos de cunho tradicionalista-religioso.
O Brasil do século XXI sob o bolsonarismo será menos diverso na medida em que enfatiza nossas raízes cristãs e, portanto, europeias em detrimento de contribuições de povos não brancos, em especial os africanos. Também tende a ter a sua classe média varrida do mapa numa economia de baixa complexidade. Outra vítima fatal da continuidade de bolsonaristas no poder — não necessariamente em Brasília — será a produção científica.
Por exemplo, as universidades estaduais paulistas correm sério perigo caso o bolsonarista Tarcísio de Freitas ganhe o governo do Estado de São Paulo. A USP, aliás, tem sua fundação associada à derrota das oligarquias cafeeiras contra Vargas na Revolução de 32. O lema oficial da universidade — vencerás pela ciência — resume a ambição de compensar a perda de poder político com o poder do conhecimento. Criou-se, ironicamente, uma sinergia com o nacional-desenvolvimentismo que, com alterações circunstanciais, perdura até hoje.
Se Brasília e São Paulo estiverem sob as mãos de bolsonaristas, a grande marcha rumo ao passado tende a ser rápida. Sobrarão apenas os grandes campos monocultores de grão e cultura, de corpo e alma. Neste 30 de outubro, estará, portanto, em jogo não apenas o legado da Constituição de 1988, mas tudo aquilo que construímos ao longo de um século — um país mais humano, inclusivo e soberano.
Estamos, assim, entre continuar a ser Macunaíma ou voltarmos ao estágio de Jeca Tatu — personagem de Monteiro Lobato que exemplificava um país dependente da monocultura de exportação. Nunca foi tão fácil jogar uma nação na lata do lixo. Do mesmo modo, nunca foi tão fácil começar a salvá-la.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.
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