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'Resistência': redes bolsonaristas vão do desamparo aos gritos de golpe
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* Thatiane Moreira
Como era de se esperar, nem Jair Bolsonaro, nem os seus apoiadores mais radicais aceitaram o resultado do pleito eleitoral. Considerando que o presidente passou todo o mandato questionando a eleição da qual saiu vencedor, não era de se esperar que, agora, aceitasse democraticamente uma derrota.
As manifestações de rua pós-eleição deixam claro o campo político do qual pertence o bolsonarismo. Se ainda restavam dúvidas sobre o sentido dos discursos dúbios sobre a democracia e a liberdade, estas dúvidas se esvaíram. Promover manifestações de rua é legítimo, no entanto, o que presenciamos durante a semana são grupos pedindo intervenção militar, anulação das eleições, prisão de ministro do STF, assentados na ideia de uma suposta fraude eleitoral que não existiu.
Nos últimos dias, acompanhei de perto essa movimentação em grupos digitais bolsonaristas, com um olhar para as contradições, as negociações e as mudanças de discurso que deram origem às manifestações golpistas nas ruas.
No domingo à noite, após a definição da eleição, a sensação foi de desamparo, desespero. Havia mais dúvidas do que certezas: será que está tudo perdido? Será que as Forças Armadas vão realmente agir? Será que, na verdade, o presidente é "frouxo" demais? Afinal, pensavam os integrantes dos grupos, "gritamos o eu autorizo nas ruas e ele não fez nada".
No meio destas incertezas ecoavam algumas vozes pedindo confiança, que era preciso esperar a fala do "capitão" para que o "exército do povo" agisse - mensagens jogadas, que poucos replicavam. A essa altura, o desamparo era tamanho que muitos administradores de grupos bolsonaristas em um aplicativo de mensagens fecharam os grupos para conversa por volta das 19:00 horas, ou seja, ninguém mais podia mandar mensagem. Era melhor esperar.
Na manhã de segunda-feira o ânimo mudou, e junto com ele o tom das mensagens. A presença dos caminhoneiros bloqueando estradas fortaleceu a sensação de que a luta continuava. Lemas como "retroceder jamais", "o poder emana do povo" começaram a dominar os grupos, assim como o discurso de fraude eleitoral. A ideia de que a batalha não acabou, que era preciso "lutar pela liberdade do Brasil", contra "a fraude eleitoral organizada pelo PT e pelo STF" começa a ganhar adeptos e se ligar à percepção de urgência da ação.
Restava organizar o que fazer e para onde ir. Diversos novos grupos no Telegram começaram a ser criados, para tratar de estratégias de engajamento e troca de informações. Inicialmente os nomes dos grupos se dividiam entre os que eram "resistência" e os que eram "intervenção militar", divididos por estado, para facilitar a organização. Eu entrei em 15 destes novos grupos.
Havia muito debate sobre como agir, quais pautas revindicar, como se manifestar. Não se sabia ao certo se era para se juntar aos caminhoneiros nas rodovias, ou se era melhor se manifestar na frente dos quartéis, ou ainda se o ideal era reproduzir o tipo de manifestação de rua do 7 de Setembro. No decorrer do dia da segunda, o discurso sobre ir para a frente dos quartéis começa a aparecer com mais frequência nos grupos, e predomina a ideia de que é preciso separar a ação: ter um grupo que feche as rodovias e outro que se manifeste na frente dos quartéis.
Ainda no fim daquele dia, não estava claro para a maior parte dos participantes quais eram as pautas. Alguns falavam em intervenção militar, outros em intervenção federal, havia aqueles que diziam que era preciso anular as eleições, ou mesmo pedir para Bolsonaro se manter no poder. O "exército de patriotas" esperava ansiosamente a fala do capitão, para saber em definitivo como agir.
No início de terça-feira o discurso mudou. As mensagens de "vamos esperar a ordem do capitão" cederam lugar às falas de que o presidente não pode se pronunciar senão cometeria um crime, podendo por isso ser preso. Há o fortalecimento da ideia de que as manifestações em peso devem ocorrer no feriado do dia 2 de novembro, na frente dos quartéis principalmente.
A pauta que predomina é a da intervenção federal, que segundo os grupos bolsonaristas é uma forma de pedir a ação dos militares sem colocar em perigo a manutenção do poder do atual presidente. Para alguns, o melhor seria "resistir por 72 horas", causar o caos e ganhar apoio popular para que o presidente possa declarar Estado de Sítio. Para outros, o ideal é incentivar os militares a agirem, de modo que eles impeçam que a "esquerda volte ao poder a partir de uma eleição fraudada".
A partir de terça-feira, começou a circular muito nos grupos postagens e vídeos alertando para não se usar o nome de Jair Bolsonaro nas manifestações, nem o seu número de campanha, assim como não era para cantar nenhuma música vinculada ao presidente da República - apenas o hino nacional deveria ser ouvido.
A diretriz colocada era de que a manifestação tem que ser uma "ação civil", pela liberdade do Brasil. Aqui aparece a necessidade da manifestação parecer orgânica, como se Bolsonaro e seus aliados não tivessem influenciado o processo de organização das manifestações, como se não houvesse lideranças.
Entretanto, para quem conhece um pouco de redes digitais e de ativismo digital, sabe-se que as ações neste meio não são orgânicas. Nos vários grupos do qual participei, que englobavam diversas regiões do país, quando havia uma dúvida, as respostas eram iguais ou muito parecidas, o que denota que há uma organização, centrada em certos perfis essenciais para o processo de popularização e circulação dos discursos.
Outro ponto que me chamou a atenção foi a presença nos grupos de "infiltrados da esquerda" que começavam a mandar mensagens para perturbar a organização dos grupos. E assim que um era banido, aparecia outro. Na tarde de terça-feira muitos grupos no Telegram começaram a ser bloqueados por ordem do TSE, o que levou os grupos restantes a mudarem de nome. Assim, o que era "resistência", "intervenção", passou a ser chamado de grupos sobre compra e venda, sobre a Copa do Mundo, de receitas, de amigos do futebol, e assim por diante.
Na noite de terça-feira, dos 15 grupos em que eu estava, dez foram fechados, e nos que ainda restavam passaram a circular links para novos grupos, assim como links para entrar no Signal, uma plataforma de rede social ao estilo do WhatsApp e tutoriais ensinando como mudar o VPN para evitar bloqueios.
Após o pronunciamento do presidente da República, que demorou dois dias para pensar em uma fala de dois minutos, a motivação nos grupos digitais aumentou. Houve muita comemoração. Entenderam que o recado do presidente era para que a mobilização continuasse, e o fato dele não reconhecer a derrota seria um sinal de que eles também não deveriam reconhecer. Depois da fala, o discurso sobre "vamos para frente dos quartéis" aumentou, assim como postagens com o nome e endereço de diversos quartéis, separados por cidade, onde as manifestações deveriam ocorrer. Tudo muito rápido e organizado.
Outra consequência da fala do presidente foi a mudança de postura dos influenciadores digitais bolsonaristas de maior peso, como Nikolas Ferreira e Carla Zambelli, que começaram a falar em favor das manifestações, incentivando as pessoas a permanecer nas ruas, fortalecendo a ideia de fraude eleitoral e de que o presidente tem uma carta na manga.
Até o final de terça-feira, as manifestações se organizaram em dois momentos: caminhoneiros nas rodovias, início de pânico, chamadas para a ação, manutenção do engajamento. A intenção era mobilizar os adeptos principalmente nas redes digitais, e causar barulho.
Já a outra fase passava pela organização dos atos de rua mais amplos, agora com o "aval" do presidente e dos maiores influenciadores, que passam a pautar os discursos. Deste modo, procura-se tanto criar a percepção de uma organização orgânica, feita pelo povo, quanto fortalecer a ideia de "fraude eleitoral", e de "golpe contra o presidente".
Resta saber, agora, como serão as reações após o presidente, com dois dias de atraso, ter pedido a liberação das rodovias pelo país em vídeo nesta quarta. Ao fim e ao cabo, o bolsonarismo mostra, novamente, sua face antidemocrática e coloca em risco a liberdade e a democracia que enganosamente diz proteger.
* Thatiane Moreira é mestranda em Ciência Política pela Unicamp
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