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Dois erros (banais) de Renan ao sugerir uma lei contra 'fake news'
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O senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Pandemia, comete pelo menos dois erros banais ao sugerir a criação de uma lei contra notícias falsas no documento que encerra o trabalho da comissão. E quem luta contra e/ou estuda a desinformação há anos não pode se calar.
Segundo antecipou a imprensa, Renan quer "tornar crime a criação ou divulgação de notícias falsas, com pena aumentada se prejudicar a saúde pública". Também quer que a "retirada do ar de notícias falsas que atentem contra a saúde, a segurança, a economia ou outro interesse público relevante" possa ser determinada como medida cautelar.
O intuito, de longe, pode ser positivo. A desinformação é um problema gravíssimo. De perto, no entanto, Renan derrapa feio e pode acabar empurrando o Brasil para um buraco ainda maior.
No relatório em que traz essas propostas, o senador definiu "notícia falsa" (p. 1085) da seguinte maneira:
"É considerada notícia falsa o texto, áudio, vídeo ou imagem não ficcional que, de modo intencional e deliberado, consideradas a forma e as características da sua veiculação, tenha o potencial de ludibriar o receptor quanto à veracidade do fato."
Disse ainda que "não é considerada notícia falsa a manifestação de opinião, de expressão artística ou literária, ou de conteúdo humorístico".
Comentemos:
Que bom que conteúdo "ficcional" não será considerado falso. (com ironia)
Renan parece não se importar com a intencionalidade da notícia falsa. Ignora o dolo. Põe no mesmo pacote legal os profissionais que fazem disparos falsos em massa e os tios do WhatsApp. Trata diferentes como iguais.
"Potencial de ludibriar" é uma expressão perigosamente vaga. Muitas vezes é o receptor que não entende (ou sequer tem a capacidade) para entender a mensagem. Mesmo assim o senador quer criminalizar o emissor?
O que é "opinião"? A lei não será aplicada, por exemplo, aos negacionistas que disseram frases como "em minha opinião as vacinas matam"?
Desde pelo menos 2016 os fact-checkers profissionais já participaram de diversos fóruns para tentar definir "fake news", "notícia falsa" e/ou "desinformação". Mas o senador parece que não conversou com nenhum deles.
Não é tarefa fácil colocar no papel um problema tão complexo - mas, para que haja um debate sobre regulamentação, esse passa a ser um ponto crucial. Sem uma definição clara (e correta) sobre o crime, não se pode pensar em penalidade.
Se Renan tivesse ouvido os checadores, saberia que, nas dezenas de vezes que eles se juntaram com autoridades europeias e americanas para tentar fechar um consenso sobre o que é "notícia falsa" um dos dois cenários se deu: ou obtiveram um texto enxuto - que deixou de fora uma série de "notícias falsas" - ou se redigiu uma descrição perigosamente ampla - que poderia terminar afetando até mesmo o uso de metáforas.
Renan também peca ao falar de uma lei anti-fake news sem dizer quem fará ou como será feito o trabalho de avaliação sobre as possíveis falsidades. Será que Renan conta com os fact-checkers do Brasil? Será que conta com a capacidade dos juízes para verificar a autenticidade de informações? E antes que haja novos passos nesse sentido, é preciso dizer que os checadores não são juízes, e que os juízes não são checadores. Misturar esses papéis pode causar sério dano à liberdade de expressão vigente no Brasil.
Resta agora ao chamado G7, grupo de senadores que lidera a CPI da Pandemia, a necessidade de retroceder nessa proposta. E aqui vai uma informação de ouro - embasada em dados. É falsa a premissa de que a existência de uma lei contra "notícia falsa" leva à redução desse problema. Essa relação de causa e consequência não se confirmou em nenhum país que já tenha adotado esse tipo de legislação.
Mas como dá trabalho fazer esse estudo, aqui vai um breve resumo.
Desde 2018, a International Fact-Checking Network (rede que reúne mais de 90 checadores de todo mundo) mantém uma base de dados pública que acompanha cerca de 60 países e suas tentativas de combater a desinformação por meio de leis. E esse levantamento deixa claro que nenhum país que optou por instituir leis açodadas para combater o mal das "notícias falsas" registrou redução desse problema. Nenhum.
A Indonésia prendeu mães que compartilharam no WhatsApp informações sobre possíveis terremotos. A China obrigou o primeiro médico que falou publicamente sobre COVID-19 a se desdizer numa delegacia de Wuhan.
Na Índia e na Tailândia, há agências estatais de checagem que claramente beneficiam políticos e militares no poder. Na região da Caxemira, por exemplo, cortes de internet são feitos com frequência, como forma de evitar o avanço da desinformação.
E por que essas leis não deram certo? Por que não existe - no mundo todo - um conceito fechado e considerado adequado para "fake news". E não vai ser Renan, com uma canetada e sozinho, que alcançará essa definição.
Cristina Tardágula é diretora sênior de programas do ICFJ e fundadora da Agência Lupa
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