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Democracia e Diplomacia

Nem desalentados, nem rebeldes: a busca por uma diplomacia pós-Bolsonaro

Os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, em reunião de 2019 em Washington - Mark Wilson/Getty Images
Os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, em reunião de 2019 em Washington Imagem: Mark Wilson/Getty Images

Colunista do UOL

24/09/2020 04h00

Por Suhayla Khalil Viana de Castro*

O mundo de hoje é um mundo distópico. Contribui para tanto, sem dúvida, a pandemia, uma emergência de saúde que há meses aflige a humanidade nos quatro cantos do globo, provocando as mais variadas consequências sociais, políticas e econômicas, além da falta de previsibilidade sobre o futuro. Mas a pandemia não está só. Como se não fosse pouco passar pela maior tragédia viral desde a gripe espanhola, o mundo ainda precisa lidar com o avanço do conservadorismo. Manifestações neonazistas na Alemanha, Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil.

O panorama imediato é aterrador. A leitura diária do jornal, um verdadeiro suplício. Entre gráficos de mortes e anúncios de recessão econômica estão notícias sobre terraplanistas e defensores do retorno à ditadura.

Na política externa brasileira, assistimos perplexos ao alinhamento subserviente a Washington, à quebra do decoro diplomático, ao abandono da integração regional, a manifestações contra pautas de desenvolvimento sustentável e direitos humanos, a votações conjuntas com teocracias no multilateralismo. Que lugar nos resta nesse cenário senão a utopia? De origem grega, a palavra utopia significa o "não lugar".

Nem desalentados, nem rebeldes. Simplesmente cansados de criticar a política externa do governo Bolsonaro, membros da comunidade de política externa, com destaque para um corajoso grupo de jovens diplomatas, decidiram romper com essa realidade distópica que nos cerca e planejar o futuro. Mesmo reconhecendo que não há lugar no contexto atual para esse conjunto de ideias, um projeto de reconstrução se faz indispensável. Não serão poucos os esforços necessários para recuperar a imagem do Brasil, nesse momento tão desgastada no exterior. Dessa iniciativa, promovida pelo Instituto Diplomacia pela Democracia, surgiu o Programa Renascença, que defende a construção coletiva de política externa humanista, democrática e laica, baseada na Constituição Federal.

O texto é bastante inovador. Ao mesmo tempo em que se ancora em tradições históricas do Itamaraty, ao defender os princípios constitucionais, também desafia alguns bastiões da política externa brasileira ao afirmar que a política externa é uma entre as várias políticas públicas, tema ainda sensível entre parte dos itamaratecas.

Também chama a atenção a defesa do pluralismo, da equidade, da justiça e do respeito à diversidade não apenas no que diz respeito à inserção internacional do Brasil, mas também com relação à própria instituição burocrática, com a indicação explícita da nomeação de uma mulher feminista como chanceler. Vale lembrar que o Brasil nunca teve uma mulher à frente do Ministério das Relações Exteriores. Um pouco mais de cem anos depois da posse da primeira mulher diplomata, o Itamaraty ainda está longe de ter um equilíbrio de gênero.

Ganha destaque igualmente a defesa da modernização da instituição diplomática em conformidade com os princípios constitucionais da Administração Pública (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e da recriação e fortalecimento de mecanismos e redes voltados à transparência, ao diálogo e à participação social em política externa, outrora incipientes.

O Itamaraty sempre foi uma instituição forte no Brasil e eventualmente insulada. Como afirma Zairo Cheibub, no seu clássico trabalho sobre o desenvolvimento institucional do Itamaraty, o corpo diplomático existia no Brasil antes mesmo de existir o próprio país dentro do sistema vestfaliano, baseado em Estados soberanos no sistema internacional. No entanto, isso não significou necessariamente uma instituição aberta. Em alguns momentos da História, houve inclusive a defesa da manutenção do esprit de corps dentro do Itaramarty, com a homogeneidade da origem daqueles que viriam a integrá-la, provenientes da elite brasileira.

Perto de completarmos 200 anos da declaração da independência do Brasil e dentro desse contexto distópico em que nos encontramos, assistir a esse movimento de renovação dentro da instituição diplomática é uma lufada de esperança e reafirma a importância dos diplomatas brasileiros não só como implementadores de política externa, mas também como seus formuladores. O texto é audacioso mesmo para tempos progressistas, mas grandes ondas conservadoras tendem a gerar também a reafirmação e o avanço das agendas progressistas em resposta.

O futuro é incerto e não há definição alguma sobre quando essas ideias poderão ser implementadas. Mas não importa. Grandes projetos nascem em meio ao caos. É preciso pensar o amanhã. Me alegro em somar-me a esse movimento. Parafraseando o chanceler e embaixador Azeredo da Silveira, mais do que a política externa dos dias de hoje é a política externa das próximas décadas que estamos hoje em vias de traçar.

* Suhayla Khalil Viana de Castro atualmente é professora da Fundação e Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Concluiu o doutorado pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, período durante o qual foi doutoranda-visitante na Sciences Po-Paris e no Instituto Universitario de Desarrollo y Cooperación da Universidad Complutense de Madrid