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Como se move a integração latino-americana?

Bandeiras dos países participantes da cúpula do Mercosul, realizada em Santa Fé, na Argentina - Divulgação
Bandeiras dos países participantes da cúpula do Mercosul, realizada em Santa Fé, na Argentina Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

23/02/2022 04h00

Mariana Davi Ferreira *

São frequentes as notícias sobre a reconfiguração da integração na América Latina: o "fim" da Unasul, crise no Mercosul, criação do Prosul, o Grupo de Lima, a rearticulação da CELAC. Tais transformações nos blocos regionais e mecanismos de cooperação refletem contínuas disputas de projetos políticos para a região. No caso da América Latina, há que se pesar também os interesses do imperialismo, já que a região é estratégica para os Estados Unidos, além de outras potências extrarregionais que ganham peso na região, como a China.

Modelos de regionalismo em disputa não são projetos políticos que "pairam" no ar. Devem ser avaliados a partir da correlação de forças na conjuntura histórica, com atenção para os interesses e as movimentações das frações de classe, e não do "Estado como um bloco maciço". Em pesquisa que venho desenvolvendo com a professora Tatiana Berringer, temos estudado como os interesses da classe dominante se articulam nos processos de integração, olhando para as relações entre as frações de classe e o Estado.

No início do século 21, durante o ciclo de governos progressistas na América Latina, o Mercosul fortaleceu a dimensão política da integração, reorientando-se para um modelo de regionalismo multidimensional ao incorporar outras questões para além da agenda econômica. O período também foi marcado pela articulação de iniciativas que procuravam ir além da integração comercial: a Unasul, a Celac, a Alba-TCP e a Petrocaribe. Há diferenças entre esses blocos regionais, mas todos foram articulados ou fortalecidos em um período em que frações da burguesia interna tinham hegemonia no bloco no poder de seus principais Estados-membros.

O que isso quer dizer? A mudança do bloco no poder dos Estados da região possibilitou que essa fração da burguesia tivesse seus interesses priorizados na condução das políticas de Estado: política econômica, social e política externa. E o que reivindicavam as frações burguesas no que tange à política externa? Melhores condições de exportação de produtos, diminuição da concorrência externa, acesso a financiamentos de organismos internacionais, políticas que atraíssem o investimento externo direto, enfim, fatores interligados à agenda da integração regional.
Essas alterações dos processos de integração relacionam-se com a configuração dos blocos no poder dos Estados mais influentes na região. Nos anos 2000, vemos a grande burguesia interna como fração hegemônica no bloco no poder dos Estados com maior força política e econômica na América Latina, Brasil e Argentina. Esses Estados priorizaram a construção de um modelo de regionalismo multidimensional atuando no Mercosul multidimensional ao mesmo tempo em que protagonizavam a estruturação da Unasul e da Celac.

Enquanto isso, na Venezuela, em um processo de ampla mobilização popular, a eleição de Hugo Chávez em 1998 resultou na construção de um modelo de regionalismo anti-imperialista. A política externa venezuelana, principalmente entre 2004 e 2012, protagonizou a construção da Alba-TCP, construída em oposição à proposta da Alca, em 2004, e ativou a Petrocaribe, que se fundavam sob princípios de unidade latino-americana, luta anti-imperialista e diplomacia dos povos.

Esses processos aumentaram a margem de manobra da região "atuando em bloco" em organismos internacionais multilaterais. Tendo ocorrido em paralelo ao fortalecimento das relações com a China, a região recompôs suas reservas e proporcionou ganhos aos setores vinculados à exportação de commodities. O Estado brasileiro priorizou relações com a América Latina e com a África e, na construção das relações Sul-Sul, o BNDES contribuiu para internacionalização de grandes empresas brasileiras, resultando em benefícios ao grande capital da burguesia interna.

As mudanças nos processos de integração que ocorreram no início do século 21 tem relação direta com as eleições e as alterações no bloco no poder dos Estados argentino e brasileiro. Nota-se grande dinamismo: é melhor falar em reconfigurações do regionalismo do que integração ou desintegração. A natureza do regionalismo é contingente, por isso não é viável determinar o caráter do bloco regional de maneira estática.

Um bloco regional pode corresponder a diferentes modelos de regionalismo a depender do momento histórico. Na periferia do capitalismo, os modelos variam entre regionalismo multidimensional, regionalismo aberto ou anti-imperialista.

No caso do Mercosul, na década de 1990, o bloco assumia modelo de regionalismo aberto sob a hegemonia de frações da burguesia associada/compradora no bloco no poder da Argentina e do Brasil, principais membros do bloco regional. Esse modelo prioriza uma agenda de liberalização comercial. Já no início dos anos 2000, o Mercosul assume características do regionalismo multidimensional impulsionado pelas mudanças no bloco no poder na Argentina e no Brasil.

A partir da segunda década do século 21, há uma convergência entre mudanças nos blocos do poder dos Estados mais influentes (Brasil e Argentina) e uma intensificação da crise econômica. Com a ascensão de governos alinhados ao neoliberalismo ortodoxo, - Mauricio Macri na Argentina e os governos de Temer e de Bolsonaro no Brasil, a burguesia associada ao capital internacional passou a ser hegemônica no bloco no poder desses países. Seus interesses priorizaram uma política externa com uma posição de alinhamento aos EUA e o regionalismo aberto. Com essas alterações nos blocos no poder, os Estados fortaleceram um perfil eminentemente comercial do Mercosul e abandonaram iniciativas que desenvolviam modelo multidimensional (como explicita a saída da Unasul).

Nesse cenário de alterações na integração, a crise da Venezuela ocupou espaço central, com forte ingerência dos Estados Unidos por meio das sanções econômicas e ameaças do governo Trump. Regionalmente, articulou-se o Grupo de Lima, em 2017, - com Argentina, Peru, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, México e mais sete países - tendo objetivo de contribuir para a resolução da crise política entre o governo e a oposição venezuelana. A articulação foi vista com cautela pela Venezuela. Em 2019, formou-se o Prosul, a partir da iniciativa de Piñera - então presidente do Chile -, com participação da Argentina, do Peru, do Brasil, da Guiana, do Equador e do Paraguai. Alguns especialistas apontam que o Prosul teria como principal objetivo isolar a Venezuela na região.

Alguns acontecimentos recentes nos dão indícios importantes de que as disputas entre projetos para a América Latina tendem a persistir no próximo período. A tentativa de rearticulação da Celac, por meio da reunião que ocorreu no México, em setembro de 2021, pode ser lida como resistência ao regionalismo aberto. A Celac busca construir um processo de integração regional multidimensional entre os países da América Latina e do Caribe em alternativa à Organização dos Estados Americanos (OEA). Obrador, presidente do México, afirmou que a substituição da OEA "por um organismo verdadeiramente autônomo" não deveria ser descartada.

A vitória de Luis Arce, candidato do MAS, nas eleições presidenciais bolivianas em 2020, um ano após o golpe, também é sinal de reconfiguração da correlação de forças internas de um país que protagonizou a construção do regionalismo anti-imperialista nos governos de Morales. Após a eleição de Alberto Fernández, a Argentina se retirou do Grupo de Lima e do Prosul em 2021. O Peru também saiu dos dois blocos após a eleição do Pedro Castillo como presidente, em junho passado. Tais acontecimentos sinalizam inflexão ao regionalismo aberto.
Muitos processos eleitorais ocorreram na América Latina, nos últimos meses de 2021. Na Nicarágua, em meio a turbulências e questionamentos, Daniel Ortega foi reeleito. Nas eleições legislativas da Argentina, a extrema-direita teve resultados expressivos. Nas eleições para governadores na Venezuela, o PSUV, partido chavista, conquistou 20 estados e a oposição três. Xiomara Castro foi eleita a primeira mulher presidenta de Honduras apresentando programa de esquerda. No Chile, Gabriel Boric, ex-militante do movimento estudantil, venceu as eleições presidenciais, que apresentaram a novidade de uma forte extrema-direita representada por Kast.

No início deste ano, o cenário político continua complexo. A crise política peruana empurra o governo de Castillo para a direita. Temos visto o fortalecimento das relações sino-latino-americanos, com destaque para uma maior presença regional da Argentina, que acabou de entrar na Nova Rota da Seda, somado ao isolamento diplomático do Brasil.

Em 2022, duas eleições para presidentes contribuirão para definições dos rumos do regionalismo: na Colômbia e no Brasil. São importantes Estados no cenário regional e passam por crises marcadas pelo desgaste do neoliberalismo ortodoxo. Nas eleições, estarão em disputa projetos de esquerda e de direita cujos desdobramentos afetarão também a configuração os processos de integração regional.

Mesmo que a eleição não seja uma fotografia em alta resolução sobre a movimentação das frações da burguesia, os resultados dos pleitos nos dão indícios sobre a correlação das forças sociais desses países. Essas fotografias de processos emaranhados e complexos nos ajudam a entender que no capitalismo, e talvez ainda mais no capitalismo dependente, os processos de integração são contingentes e modificam-se de acordo com as mudanças nos blocos no poder dos Estados-membros.

* Mariana Davi Ferreira - Cientista Social e Internacionalista. Doutoranda em Ciência Política na Unicamp.