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OPINIÃO

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Quais narrativas aproximam a CPI da Covid da Comissão Nacional da Verdade?

19.mai.2021 - Ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello durante o depoimento à CPI da Covid, no Senado - Jefferson Rudy/Agência Senado
19.mai.2021 - Ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello durante o depoimento à CPI da Covid, no Senado Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Colunista do UOL

13/01/2022 04h00

Por Maria Alice Venâncio Albuquerque*

Há cerca de uma década, as conclusões da Comissão Nacional da Verdade (CNV) —que averiguou crimes cometidos pelas Forças Armadas durante a ditadura militar (1964-1985)— eram contestadas sob o argumento de que não passavam de narrativas. Para eles, essa expressão era sinônimo de fábulas ideológicas.

Diante das constatações da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia —que se debruçou sobre as ações e omissões do governo federal no combate à pandemia de covid-19, bem como o colapso na saúde pública do estado do Amazonas—, senadores governistas lançaram mão da mesma tática. É necessário, portanto, um olhar atento para as apropriações da expressão "narrativa" como recurso retórico para desvirtuar noções de ciência e verdade.

Formada por 18 senadores, entre titulares e suplentes, a CPI da Covid, criada em abril de 2021 e encerrada em outubro do mesmo ano, emplacou diversas expressões usadas nos enérgicos debates e depoimentos. Uma das mais recorrentes foi "narrativa", palavra de ordem nas intervenções de senadores governistas como Flávio Bolsonaro (PL-RJ), e Marcos Rogério (DEM-RO), usada com o propósito de rebater depoimentos que comprometiam o governo federal na condução da pandemia. Para eles, narrativa "não é verdade", assim sendo, as responsabilizações da CPI da COVID não passariam de "expediente político, e bem rasteiro". Tentavam, assim, desacreditar o trabalho e as conclusões da comissão e solapar a memória recente.

Especialmente no caso da CPI da Covid, desmerecer o trabalho investigativo e de oitivas era estratégia para livrar o presidente Bolsonaro de algum tipo de responsabilização. E, como toda narrativa tem uma "contra narrativa", a dos governistas se firmava na pulverização da culpa, apoiando-se no argumento de que a condução dos serviços de saúde no Brasil é descentralizada e o chefe do Executivo nacional nada podia fazer, a não ser lives espalhando sua "verdade", que contrariava a ciência.

Outra famosa comissão também gerou embates políticos significativos, tendo visto seu trabalho desacreditado como "narrativa da esquerda" impulsionada por "revanchismo". A Comissão Nacional da Verdade (CNV), contestada desde que foi sugerida sua criação no Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3), foi marcada por manifestações impetuosas das pastas da Defesa e dos Direitos Humanos que chegaram ao ponto de os respectivos ministros ameaçarem demissão. Foi necessária mediação do presidente Lula antes do envio do projeto de lei de criação da comissão para o Congresso Nacional em 2010, se tornando a Lei 12.528 de 2011 que oficialmente cria o órgão.

Em 2012, a CNV começou seus trabalhos seguindo o formato recomendado por organizações e documentos internacionais: formalmente criada pelo governo federal, sem atributos jurídicos, voltava seus esforços investigativos para período determinado previsto em lei, com prazo delimitado de 2 anos para encerrar os trabalhos e apresentar relatório final com conclusões e recomendações. A CNV conseguiu concluir seu relatório em dezembro de 2014, apesar da pouca colaboração de membros das Forças Armadas. O documento é dividido em três volumes e contempla diversas seções. De particular interesse para este espaço de construção, há um extenso capítulo sobre a atuação do Itamaraty.

Sua divulgação foi recebida com consternação por alguns setores da sociedade, especialmente as Forças Armadas, que tiveram vários de seus membros listados entre os 377 agentes públicos responsabilizados pela repressão durante a Ditadura Militar, alguns ainda vivos na época da divulgação do relatório.

É ilustrativa a nota de repúdio divulgada pelo general da ativa Sérgio Etchegoyen e sua família logo após a divulgação do relatório, na qual classificou o documento como "leviano". Segundo a nota, o relatório da CNV apresentava o nome do pai do general Etchegoyen apenas na intenção de "denegrir", não vinculando-o a quaisquer fatos, vítimas ou conduta penal específica. Ainda na nota, o general aponta que o relatório empreendera "patético esforço para reescrever a história", apontando "um culpado para um crime que não identifica, sem qualquer respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa".

Além dessa manifestação, à época, os clubes da marinha, do exército e da aeronáutica apresentaram um "contrarrelatório" em que elencava 126 vítimas dos grupos da luta armada. O documento continha erros grosseiros, apontando como mortos pessoas que estavam vivas. Passados alguns anos, o general ainda expressava indignação com a responsabilização de seu pai, demonstrando rancor provavelmente aprofundado quando, no ano seguinte, teve seu pedido de retirada do nome negado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Além dessa e outras contestações, segundo Pedro Dallari, ex-coordenador da CNV, nesse período de quase uma década da entrega do relatório final vigorou uma combinação de "silêncio e contemporização", que diz respeito justamente à pouca apropriação da narrativa de verdade factual construída pela CNV e ao pouco avanço das medidas recomendadas pelo relatório.

O espaço que a verdade da Comissão não ocupou nos espaços públicos e na memória da sociedade brasileira foi paulatinamente ocupado pela contra memória: a de apologia à ditadura que boa parte das Forças Armadas e o presidente da república tentam construir. Diferente das manifestações anteriores, que reivindicavam "isenção" nas investigações sobre as graves violações de Direitos Humanos, o que tem sido feito durante o governo Bolsonaro, que conta com ampla e desastrosa participação de militares, é a negação e revisão da história - vista como narrativa enviesada da "esquerda terrorista".

O Estado Democrático de Direito deve se alicerçar em narrativas, essas sim, baseadas em investigações, em testemunhos e respaldadas na ciência - seja a Medicina, a História, ou o Direito. Assim como as descobertas da CNV, os achados da CPI da Covid sofrem ataques sistemáticos de grupos radicais que minam os esforços no combate à pandemia da covid-19 no Brasil, revelando o poder que as narrativas têm, bem como o perigo de não estarmos atentos a elas. O que hoje é uma negação e pulverização de responsabilidade para com a vida, não serve tão somente para safar Bolsonaro, no presente, de possíveis implicações punitivas, mas para salvaguardar e sedimentar seu futuro político, apoiado no esquecimento e na naturalização da morte de mais de 620 mil pessoas.

* Maria Alice Venâncio Albuquerque é Doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio (IRI/PUC-RJ), mestra em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. Atualmente membro da Rede de Estudos em Paz, Conflito e Estudos Críticos de Segurança.
Contato: albuquerquemav@gmail.com