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Democracia e Diplomacia

REPORTAGEM

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Rússia x Ucrânia: Sanções pela paz ou prelúdio à guerra?

Presidente russo, Vladimir Putin disse que sanções impostas contra a Rússia afetarão o Ocidente, em preços maiores de comida e energia por exemplo - Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin via Reuters
Presidente russo, Vladimir Putin disse que sanções impostas contra a Rússia afetarão o Ocidente, em preços maiores de comida e energia por exemplo Imagem: Sputnik/Mikhail Klimentyev/Kremlin via Reuters

Fabio Pereira de Andrade*

Colunista do UOL

22/03/2022 04h00

Diante da violência e da importância do conflito entre Rússia e Ucrânia, faltam informações qualificadas e sobram especulações a respeito das causas da guerra, da evolução do confronto e dos cenários futuros. Além da batalha por informação e narrativas, nota-se, em algumas situações, o fomento a controvérsias por meio de diferentes modelos analíticos das Teorias de Relações Internacionais, em outras através da simples reprodução de discursos hegemônicos. Como consequência, a avaliação das ações militares e econômicas que cercam a disputa fica prejudicada.

Sanções são um tema clássico e um dos mais controversos. O Brasil, por exemplo, costuma se opor a medidas unilaterais, sem a chancela da ONU. Acaba sendo pressionado por atores internos e externos quando isso contraria seus interesses.

Em que pese o risco de anacronismo e da diferença conjuntural, resgato a seguir reflexões de John Maynard Keynes sobre a Conferência de Paz de Paris e as sanções do Tratado de Versalhes. Publicado em 1919, "As Consequências Econômicas da Paz" combina análise, crítica e o prognóstico certeiro sobre os acordos de paz pós Primeira Guerra Mundial. É um clássico que, escrito há mais de 100 anos, em outro contexto, pode ajudar na compreensão do cenário atual.

1) O papel das lideranças para resolução de conflitos.

Keynes argumenta que o papel das lideranças norte-americana, francesa e inglesa foi fundamental para a má redação do acordo. Destaca que a postura do Presidente americano era marcada pela lentidão e sujeição às pressões do eleitorado. Especificamente, apesar de certa áurea internacional, no campo de negociação Woodrow Wilson titubeava e com isso mostrava fraqueza. Podemos estender esse paralelo às lideranças ocidentais? Vale o paralelo com John Biden?

Na análise de Keynes, o primeiro ministro francês exercia maior influência durante a Conferência de Paz de Paris, enquanto Wilson destacava-se (negativamente) por certo distanciamento, em especial em momentos e temas cruciais. Na visão do economista britânico, tal postura não era condizente com um dos atores políticos mais importantes do ocidente, tampouco se coadunava com a imagem de líder que buscava consolidar instituições, como a Liga das Nações, com poder arbitral em conflitos internacionais.

A reflexão acerca do imobilismo não se deve restringir ao presidente norte-americano. É possível refletir sobre a hesitação dos líderes europeus, que minimizaram as incisivas críticas russas à expansão da Otan, que datam pelo menos de 2007, senão da década de 90, o descontentamento russo com a participação do ocidente na virada do governo na Ucrânia em 2014, e seus movimentos ofensivos em 2008 na Geórgia e em 2014 na Crimeia. Às vésperas da recente invasão da Ucrânia, lideranças europeias e norte-americanas apostavam em resolução diplomática e sem conflito militar.

2) O tempo como variável que amplia interesses econômicos.

Keynes mostra que durante a Conferência os termos mudaram rapidamente. No início não se pleiteava impor à Alemanha qualquer indenização. No entanto, os interesses de França e Inglaterra escalaram rapidamente, migrando para uma combinação de indenização impagável e punição exemplar das autoridades alemãs.

Em certo sentido, o padrão identificado pelo economista britânico se estende ao comportamento atual de lideranças ocidentais. Às vésperas da invasão da Ucrânia, ainda se vislumbrava resolução via diplomacia. Em menos de duas semanas, a solução diplomática foi convertida em ações militares. Uma vez instalado o conflito, a escalada de sanções econômicas foi vertiginosa! Em 3 dias, o G7 autoriza a exclusão dos bancos russos do SWIFT. Após 12 dias, os Estados Unidos proíbem a importação de petróleo russo, parte importante das reservas russas aparentemente foi confiscada e há movimentos na OMC, na OCDE, no FMI, no Banco Mundial e em outras organizações para "cancelar" os russos.

Um ponto que não poderia ser antecipado por Keynes é a postura de empresas multinacionais norte-americanas, que encerraram operações e/ou proibiram a comercialização com a Rússia.

A escalada de sanções opera como resposta à ofensiva militar Russa, refletindo o fracasso das negociações diplomáticas. Em comum entre o passado e o presente, a crença de que a aplicação de sanções limita posturas indesejadas e, o mais preocupante, a noção de que seus efeitos são apenas econômicos e limitados ao país que recebe a sanção. Infelizmente, desde o fim da I Guerra Mundial, a histórias nos fornece evidências que sinalizam que as consequências seguem tendências diferentes das planejadas. Mas, La Nave Va...

3) Sanções provocam severos efeitos colaterais econômicos.

Em sua análise, Keynes antecipou que os efeitos econômicos adversos das sanções não se limitariam à Alemanha, estendendo-se à Europa, dada a centralidade da economia alemã. Esse talvez seja o ponto em que a previsão keynesiana se mostrou mais assertiva. Assim, é necessário considerar os feitos adversos das sanções econômicas impostas à Rússia. Considerando a importância da Rússia para matriz energética europeia, há possibilidades de que as sanções agravem o quadro regional?

O primeiro efeito colateral incide sobre os países europeus. Segundo dados que podem ser acessados pelo portal Statista, 60% da matriz energética da Europa é dependente do fornecimento de insumos russos. Em consequência, qualquer sanção nessa área implica em um aumento do custo de energia, resultando em inflação. Além disso, cumpre destacar desafios logísticos que caracterizam o fornecimento de gás natural. No curto-prazo, o aumento dos custos pode dificultar o processo de alteração da matriz para energias limpas e renováveis.

Em uma análise mais sujeita a polêmica, saliente-se que no início as sanções não alcançavam o fornecimento de gás natural. Contudo, o embargo norte-americano à importação de petróleo russo gerou uma resposta, qual seja, a ameaça de suspensão parcial no fornecimento de gás à Europa (via Nord Stream 1). Esse imbróglio suscita percepção ruim de que sanções incorporam ruídos de comunicação. Em uma dimensão geral, é informado à opinião pública que severas sanções serão aplicadas. No detalhe, excluem-se das sanções insumos centrais para quem aplica a punição! Pergunta sincera: tal procedimento não demonstra erro de raciocínio lógico não condizente com importantes tomadores de decisão? É razoável ignorar que punições podem gerar efeitos colaterais, insegurança jurídica e econômica, revanchismo?

Ainda no âmbito comercial, a Rússia é um importante fornecedor de trigo e níquel. São duas commodities inseridas em cadeias de produção extensas, de tal forma que os impactos serão difusos. Se a guerra gera um choque de oferta e provoca inflação, sanções podem aprofundar adversidades e estimular ainda mais mecanismos de auto-defesa, como restrições ao comércio e outras formas de nacionalismo econômico.

No caso do Brasil, os efeitos da alta do petróleo já se fazem sentir para a população. É preciso reconhecer, entretanto, que parte desse impacto decorre de imprevidências nas políticas de preços e outras decisões estratégicas infelizes que vem sendo tomadas na Petrobras e no setor energético brasileiro de maneira geral. Não sem aviso. No caso de adubos e fertilizantes, produtos que importamos em larga escala, a agricultura brasileira já sente os impactos da escassez, já que a Rússia é ator central nesses mercados. Nesse caso também os alertas vêm de longa data.

4) Sanções pioram o ambiente político.

Ainda no campo da análise e prognóstico, Keynes se preocupou com os efeitos das punições sobre a população alemã. O representante britânico na Conferência de Paris temia que tais sanções alimentassem sentimentos de revanchismo na população e que o vácuo de lideranças inviabilizaria a infante democracia alemã. No contexto atual, há reflexões sobre os efeitos sociais das sanções sobre a Rússia? Os analistas demonstram preocupação com o recrudescimento do autocrático governo russo? Ou, adiante, se Putin porventura cair, quem ou quais grupos liderarão a Rússia?

Não há um equívoco nos países ocidentais, qual seja, acreditar que uma autocracia pode ser derrubada com sanções econômicas? Há alguma ideia de quais forças assumiriam o poder com a derrocada do gabinete de Putin?

A análise da qualidade da democracia consiste em avaliar o funcionamento de instituições políticas. O surgimento, o funcionamento e a importância das regras formais, informais e de organizações para o êxito democrático e econômico é um tema polêmico em ciências sociais. No entanto, nas últimas três décadas houve evolução em discussões sobre parâmetros mínimos.

Objetivamente, desde de 2016 a Universidade de Würzburg analisa o funcionamento da democracia através dos seguintes indicadores: possibilidade de questionamento dos procedimentos de decisórios; existência de regulação de esferas intermediadoras; clareza na comunicação pública; garantia de direitos, sobretudo para grupos minoritários; regras claras para implementação de políticas públicas. Tomando como referência a avaliação parametrizada dessa Universidade, a Rússia possui um regime que pode ser denominado de autocracia moderada, em especial por insuficiência na liberdade em cada um dos seis indicadores institucionais.

Tomando como base análises do historiador Timothy Snyder, pode-se argumentar que o governo Putin segue a ideologia de Ivan Ilyn, para quem a construção da Rússia não comporta valores condizentes com o liberalismo político. Nessa visão, os valores russos devem seguir uma dimensão metafísica intimamente ligada a correntes da Igreja Ortodoxa.

Há, portanto, elementos objetivos e analíticos para caracterizar como autocrática a autoridade que ordenou a invasão da Ucrânia. Sobre isso, cabem julgamentos morais e posicionamentos políticos, mas disso não decorre que sanções sejam eficazes para alterar o curso do conflito militar e tampouco para enfraquecer o regime autoritário de Putin.

A eficácia em ambas as dimensões parece fundamentar a postura do ocidente. Entretanto, essa crença ignora lições do passado iluminadas por Keynes e outros autores, desconsidera que sistemas de governo autocrático são constituídos em longos intervalos de tempo, em processos cuja maturação ocorre em simbiose com parcelas influentes na sociedade e muitas vezes com profundo enraizamento popular. Ademais, a crença das lideranças ocidentais parece ignorar o histórico recente, tendo em vista que campanhas diretas para trocas de líderes ou mudanças de regime no Iraque, na Síria, e mesmo no Afeganistão, com a volta do Taliban, não foram bem-sucedidas.

Não parece haver qualquer evidência de que sanções contribua para o "aprimoramento" do sistema político, para sua democratização, pacifismo, etc... Pelo contrário, infelizmente, como não há vácuo de poder, o mais provável é que a desorganização e empobrecimento suscitem a ascensão de novos líderes e movimentos, igualmente autocráticos. O caso sul-africano, no qual sanções econômicas contribuíram para o fim do apartheid é um possível contrafactual. No entanto, a situação da África do Sul apresentava uma peculiaridade, qual seja, a existência de uma oposição organizada e presente na vida política do país, maioria representando quase 80% dos habitantes que viviam sufocados pelo regime de opressão. Consequentemente, no país de Nelson Mandela as dúvidas residiam sobre quão violenta seria a transição do sistema. Essas condições não existem na Rússia atual.

5) Sanções podem trazer problemas para sancionados e sancionadores.

Keynes alerta sobre os riscos ligados à impossibilidade de pagamento por parte da Alemanha. Em termos econômicos, a incapacidade de arcar com as sanções desvalorizaria o marco e geraria pressão inflacionária no país. Em virtude da centralidade da Alemanha, a desarticulação da produção local contribuiria para a inflação transbordar para os demais países europeus. O britânico assinala ainda a desorganização política no país e o revanchismo que haveria de crescer na população.

Em uma hipotética derrota russa, os custos de reconstrução da Ucrânia seriam repassados? A Rússia conseguiria arcar com tais custos? Em virtude das sanções aplicadas, já tem ocorrido forte desvalorização do rublo, com potencial geração de inflação na Rússia. O transbordamento para Europa também tem se se manifestado pela redução na oferta de importantes e diferentes insumos básicos. Que tipo de regime sucederia a Putin? Quais as consequências de se segregar e humilhar os russos, que comandam a segunda potência militar do planeta?

Esse é um mapa de algumas das questões que podem ser construídas a partir da obra de Keynes. Os pontos destacados podem contribuir para os debates acerca do limite entre sanções para a paz e os insumos para guerra. Nessa linha demarcatória, destaco para encerrar três fatores excepcionais na atual conjuntura:

- Tendo em vista a saída desordenada no Afeganistão, e a ascensão chinesa, se acumulam dúvidas sobre capacidade norte-americana de exercer papel hegemônico nas décadas adiante.

- O papel primordial da China, seja em uma solução negociada diplomática, seja no prolongamento do conflito. A China não apoia as sanções. Pode jogar papel privilegiado nos fluxos comerciais e financeiros com a Rússia. Em cenário mais grave, pode apoiar abertamente os objetivos russos e com isso pavimentar o caminho para uma Guerra Mundial. A entrada da OTAN de maneira direta no conflito também pode ter consequências globais muito dolorosas.

- A Alemanha como ator que retoma papel militar ativo após a II Guerra Mundial.

Fabio Pereira de Andrade é Doutor em Administração Pública e Professor do Curso de Relações Internacionais da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing)