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Qual o papel da diplomacia dos povos na América Latina?
Faz algumas semanas, escrevi nesta coluna sobre a reconfiguração do regionalismo na América Latina. Apresentei os projetos políticos em disputa na atual conjuntura e como isso se relaciona com os interesses das diferentes frações das classes dominantes nos países latino-americanos. Naquele momento, não explorei em profundidade como as classes populares, nos países da América Latina, também são atores das relações internacionais. Essa atuação "para fora das fronteiras" foi nomeada como "diplomacia de los pueblos" pelo ex-presidente da Bolívia, Evo Morales. Ora, se diplomacia é a ação internacional do Estado nacional, como poderíamos falar em diplomacia dos povos?
A diplomacia dos povos é uma concepção de ampliação dos sujeitos das relações internacionais que vê os povos e os movimentos sociais como construtores da diplomacia e da integração regional. Não há uma oposição à atividade diplomática dos Estados, mas sim uma busca para fortalecer a relação dos povos com os governos que executam a política externa, de certa forma trabalhando por sua democratização.
No século XXI, na América Latina, a diplomacia dos povos foi exercida de maneira criativa no âmbito da Aliança dos Povos para Nossa América (Alba). Entretanto, mesmo antes de Evo Morales nomeá-la, já existiam iniciativas que faziam dos movimentos sociais e organizações populares sujeitos construtores das relações internacionais e do internacionalismo. Exemplos de articulações setoriais são a Coordenadoria Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC) da Via Campesina, da qual faz parte o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), por exemplo. A articulação dos Movimentos dos Afetados por Represas (MRE), espaço onde o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) participa, e a Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes (OCLAE), na qual está a União Nacional dos Estudantes (UNE). Por vezes existem relações entre governos e movimentos sociais.
Cuba, por exemplo, recebe anualmente militantes de alguns desses movimentos para estudarem na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM). Também destaco grupos de solidariedade internacional como as brigadas que o MST constrói no Haiti e na Venezuela, no âmbito da CLOC, e movimentos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que no momento realiza em Brasília o Acampamento Terra Livre, e tem procurado ampliar contatos internacionais.
Além dessas iniciativas, desde a década de 1990, também há experiências de articulação regional de movimentos sociais e sindicatos na luta contra o neoliberalismo, com destaque para a histórica luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Essa articulação das classes populares na década de 1990 em torno da luta antineoliberal tem suas raízes na luta anti-imperialista na região, com forte influência do leito histórico das revoluções latino-americanas da segunda metade do século XX.
A unidade de luta em nível regional foi também impulsionada pelas contrarreformas neoliberais que tiveram impactos negativos na vida de trabalhadoras e trabalhadores. Retirada de direitos, flexibilização de garantias trabalhistas e privatização de empresas estatais não resultaram nos benefícios que seus propagandistas apregoavam. Ao contrário, pioraram as condições de vida da população.
A articulação contra a aprovação da Alca foi construída da década de 1990 até 2005, ano em que a proposta foi arquivada na Cúpula das Américas, em Mar del Plata, que reuniu Chefes de Estado e de Governo dos países membros. Os movimentos da região encontravam-se paralelamente às Cúpulas das Américas, a partir do que ficou conhecido como "Cúpulas dos Povos", e construíram lutas no interior dos seus países.
O Plebiscito contra a Alca no Brasil foi um exemplo. Várias organizações articularam-se em sua construção, entre elas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a UNE, o MST e outros movimentos. Segundo notícia da EBC na época, mais de 10 milhões de pessoas votaram, com 98% dos votos contra a adesão do Brasil.
Na esteira desse processo, em 2004, a política externa venezuelana articulou a construção da Alba, iniciativa anti-imperialista em contraposição à Alca, mas também na luta geral contra o regionalismo aberto, que é o modelo neoliberal de integração. A Alba integrava Estados nacionais - com destaque para a atuação da Venezuela, de Cuba e da Bolívia -, mas também movimentos sociais, possuindo entre seus princípios a "diplomacia dos povos". Assim, no escopo da Alba, desenvolveu-se uma iniciativa de articulação de movimentos sociais para a integração da América Latina: a Alba Movimentos. Todas essas articulações aglutinadas colaboraram para o processo de arquivamento do projeto da Alca.
Posteriormente, a Alba, enquanto articulação entre Estados nacionais, teve suas iniciativas impactadas pela queda no preço do petróleo, principal fonte de recursos para financiar os projetos do bloco. Em paralelo, o projeto neoliberal ortodoxo ganhou campo na institucionalidade dos países da região. Como consequência, observamos a diminuição nas iniciativas de regionalismo multidimensional, ou seja, enfraquecimento de diferentes dimensões da integração como a saúde, a educação, a cultura, para além da economia.
A virada política se refletiu em tentativas de retroceder o Mercosul de uma união aduaneira para uma zona de livre comércio, no abandono da Unasul, no enfraquecimento da Celac e em iniciativas de concertação política, como o Grupo de Lima, e de regionalismo aberto, como o Prosul.
O avanço do regionalismo aberto não ocorreu, porém, sem resistências das forças populares. Diversas iniciativas dos movimentos sociais persistem, a despeito da conjuntura adversa, por meio da construção de campanhas e lutas continentais, além da formação de brigadas internacionais de solidariedade. Tais movimentos continuam a articular-se internacionalmente contra o neoliberalismo e a ingerência externa dos EUA na região, como demonstram campanhas construídas contra o golpe na Bolívia, em 2019, contra o governo neofascista de Bolsonaro, contra as sanções econômicas do Estado americano à Venezuela e em defesa da liberdade de Assange.
Destaco as atuais lutas contra o "Acordo União Europeia-Mercosul", que remetem à luta contra a Alca décadas atrás, e questionam as consequências que os termos atuais do acordo trarão para trabalhadores e trabalhadoras e para as economias da região. Nessa luta, vemos iniciativas da Alba Movimentos e, no Brasil, a Frente de Organizações da Sociedade Civil Brasileira contra o Acordo Mercosul-União Europeia.
O acordo prevê a redução das tarifas de importação para os dois blocos. Porém, a Europa exportará produtos com alto valor agregado ao Brasil, como automóveis, autopeças, máquinas; enquanto o Mercosul agravará sua condição de exportador de commodities, sujeitas ainda a quotas e outras restrições, e sem previsão de transferência de tecnologia ou outras compensações para as economias do bloco sul-americano. Há também dispositivos sobre investimentos, patentes e compras governamentais, entre outros, que limitam a autonomia dos países na busca por seus próprios modelos de desenvolvimento.
É interessante mencionar as movimentações no âmbito regional e internacional de ex-chefes de Estado que cumpriram importante papel na integração da América Latina no início do século XXI. Lula, que se prepara para concorrer às eleições presidenciais em 2022, visitou o Parlamento Europeu, em notável contraste com a política externa de Bolsonaro, que tornou o Brasil pária internacional. Além dele, Evo Morales protagonizou a criação da RUNASUR, com sede em Cochabamba, cujo interesse é impulsionar uma nova plataforma de articulação de movimentos sociais na América do Sul, de caráter anti-imperialista, anti-colonialista e anti-capitalista. O nome rememora a Unasul e seria a "Unasul dos povos" e organizações populares.
São muitas as iniciativas que demonstram que os movimentos se articulam internacionalmente. Ainda este mês (abril/2022), ocorrerá a III Assembleia Continental da Alba Movimentos, em Buenos Aires, que irá debater as lutas dos movimentos sociais na América Latina frente ao cenário de fortes disputas e desestabilização política na América Latina por parte do imperialismo e da extrema-direita.
A síntese é que vivemos um momento de disputas entre diferentes forças sociais que representam distintos projetos políticos em âmbito doméstico, mas também regional. As classes populares se movimentam na tentativa de construção de força social mobilizando-se através de articulações, campanhas, brigadas e lutas internacionais. A diplomacia dos povos, discutida em recente ciclo de doze conversas promovidas pelo Instituto Diplomacia para Democracia, nos mostra que os movimentos sociais são também atores das relações internacionais.
No Brasil, por exemplo, seria importante maior participação da sociedade civil na formulação da política externa por meio da criação de um Conselho Nacional de Política Externa com representação plural. Para que seja representativo, precisamos conhecer e inserir no debate público as inquietações e lutas de movimentos sociais e forças populares.
*Mariana Davi Ferreira é cientista social, internacionalista e doutoranda em Ciência Política na Unicamp
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