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Caso Moïse: 'País acolhedor' para quem?

Manifestantes realizam ato por justiça pelo assassinato de Moïse, imigrante congolês brutalmente assassinado na Barra da Tijuca - ISABELLA FINHOLDT/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
Manifestantes realizam ato por justiça pelo assassinato de Moïse, imigrante congolês brutalmente assassinado na Barra da Tijuca Imagem: ISABELLA FINHOLDT/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

01/04/2022 04h00

A tragédia envolvendo o congolês Moïse Kabagambe, morto por espancamento no dia 24 de janeiro de 2022 em um quiosque no Rio de Janeiro, chocou pela crueldade e motivo torpe. O caso atingiu repercussão nacional e internacional quando representantes do Alto Comissariado da ONU para Refugiados e a Organização Internacional para Migrações lamentaram o ocorrido e afirmaram acompanhar os desdobramentos das investigações junto à Cáritas RJ.

Para compreendermos a tragédia de forma mais completa e profunda, é necessário entendermos dois aspectos centrais: a migração forçada no Brasil e o racismo estrutural presente em todos os âmbitos do país.

Cotidianamente, escutamos frases e jargões em que o Brasil é tido como país acolhedor e aberto a migrações. Deve-se perguntar, contudo, a que tipo de migração este acolhimento se direciona. Um imigrante europeu, branco e dotado de poder aquisitivo não encontrará, certamente, dificuldades em sua acolhida e integração. Já o imigrante forçado negro, seja solicitante de refúgio, refugiado ou com visto de residência, irá se deparar com realidade bastante distinta.

Em um panorama das mudanças nas migrações no Brasil entre 2010 a 2020, o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), publicou o relatório "Imigração e Refúgio no Brasil: Retratos da Década de 2010".

A pesquisa informa que, ao final de 2020, o país contava com cerca de 1,3 milhões de imigrantes residentes. Predominam venezuelanos, haitianos, bolivianos, colombianos e estadunidenses. Dos solicitantes de refúgio analisados, todos situavam-se no Sul Global. Menos do que uma diferenciação geográfica, esta distinção ampara-se em divisão entre países do Primeiro Mundo (Norte Global) e a periferia, o Terceiro Mundo (Sul Global). Atualmente, o maior fluxo migratório ao Brasil é proveniente da Venezuela - 60% dos solicitantes de refúgio e 96% dos reconhecimentos da condição em 2020.

Para melhor compreensão deste panorama, é importante entendermos os conceitos de solicitante de refúgio e de refugiado. O refúgio é um status jurídico reconhecido internacionalmente pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951. Ela define os seguintes critérios para reconhecimento: toda pessoa que sofre perseguição ou tem fundado temor de sofrer, por questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opiniões políticas, não podendo ou não querendo valer-se da proteção do seu país.

Com a Declaração de Cartagena (1984), houve uma ampliação da definição: incluiu-se a grave violação de direitos humanos como critério. Baseado neste entendimento, o Brasil compreende os imigrantes forçados venezuelanos como pessoas com direito a essa proteção.

O órgão nacional responsável pelas solicitações é o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Em 2020, o órgão analisou 63.790 solicitações; destas, 26.577 pessoas (41,7%) foram reconhecidas. A nacionalidade com mais solicitações reconhecidas foi a venezuelana, com 25.694 do total. No mesmo ano, registraram-se 92.544 imigrantes, com 14.854 imigrantes residentes e 74.218 temporários (ibidem). A migração no país movimentou 24.192 postos de trabalhos no mercado formal para imigrantes, sobretudo para as nacionalidades haitiana, venezuelana e colombiana.

O relatório do OBMigra, citado anteriormente, indicou mudanças na composição racial dos imigrantes. Em 2011, trabalhadores pretos e pardos eram 13,9% no mercado de trabalho formal. Em 2020, esses trabalhadores já eram maioria. O mesmo documento ainda chama atenção para diferenças salariais entre os imigrantes. Aqueles vindos do Norte Global recebem maiores salários, se comparados aos imigrantes do Sul.

Este quadro se torna ainda mais complexo quando adicionada a dimensão de gênero, uma vez que mulheres imigrantes tendem a ganhar até 70% a menos do que homens migrantes. No caso de serem mulheres imigrantes do Sul Global, estas são remuneradas com até 50% a menos que as mulheres do Norte.

O mesmo se repete em termos de raça: trabalhadores imigrantes brancos recebem significativamente mais do que imigrantes pretos e pardos. Imigrantes que ainda não possuem o reconhecimento oficial de sua situação de refúgio tendem, igualmente, a ganhar menos que aqueles com refúgio oficializado. Por fim, o relatório ainda aponta às distinções etárias, em que imigrantes jovens são remunerados com rendimentos mais baixos do que os imigrantes com idade entre 40 a 65 anos.

Em texto para a coluna Empório Descolonial (2022), a professora Karine Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina, analisou o caso de Moïse Kabagambe e demonstrou como sua morte integra uma realidade há muito conhecida por negros, negras e indígenas no país.

Karine aponta a contradição de que a política externa brasileira busca construir uma imagem positiva e acolhedora que nega a estrutura racial nacional, além de posicionar o país ao lado de nações de "primeiro mundo" no sistema internacional. Segundo a professora, estas seriam "as duas caras que o Brasil ostenta".

Tal imagem cai por terra ao se analisarem os dados das migrações. A realidade difere do retrato construído pela política externa e o caso de Moïse expressa isso cruelmente. Para além dele, porém, há inúmeros casos de xenofobia, como os sofridos por imigrantes venezuelanos em Roraima. Estes casos assinalam o lado opressivo da imigração de negros e pardos no Brasil: o racismo estrutural. Em outro texto, Karine Silva o descreve como"um regime que oprime as pessoas racializadas como não brancas à custa da produção e garantia de benefícios sistêmicos para sujeitos brancos". Para a autora, o conceito exprime as desigualdades no Brasil.

Esses dois conceitos, por fim, são centrais para entendermos a seletividade na acolhida de imigrantes no Brasil. Prefere-se o "bom migrante", aquele oriundo de países de primeiro mundo, que admiramos e almejamos devido a um sistema racial que preza pela branquitude. Exemplo desta seletividade é a empatia sentida pelos refugiados ucranianos (e que bom que a sentimos) e a ignorância acerca dos refugiados venezuelanos, colombianos, haitianos, congoleses e tantos outros.

No Brasil, a migração forçada de africanos e africanas indica como o país historicamente fundamentou seu crescimento na maior tragédia da mobilidade humana. As consequências são os dados expostos acima, bem como o linchamento de Moïse, que, embora tenha chocado o mundo, não abalou o sistema alimentado pela carne mais barata do mercado, a carne negra.

*Danielle Annoni, PhD, é professora de direito internacional na UFPR