Topo

Democracia e Diplomacia

Eliminar a miséria e a fome é imperativo moral e constitucional brasileiro

Jefferson Rudy/Fotos Públicas
Imagem: Jefferson Rudy/Fotos Públicas

Colunista do UOL

28/10/2020 04h00

Em 13 de outubro, foi realizado o primeiro debate sobre objetivos e metas do Programa Renascença. A advogada Sheila Carvalho (OAB-SP), a professora Tatiana Roque (UFRJ), o professor Luis Vedovato (Unicamp) e o pesquisador Joao Brant (políticas culturais, de internet e tecnologia) conversaram sobre renda básica, tecnologias, tributação e outros temas do objetivo 1: "Redução das desigualdades". No artigo abaixo, diplomatas do Programa Renascença avançam a discussão sobre a meta 1: "Trabalhar - nas Nações Unidas, prioritariamente; no G20 e em outros foros, no sentido da construção de consensos - em prol da aprovação de renda básica universal".

O Bolsa Família consolidou-se, entre outras razões, por ter se tornado o primeiro degrau de uma escada: franqueou a milhões de pessoas entrada no sistema de proteção social formal. Custava, no cenário pré-Covid, apenas 0,5% do PIB brasileiro.

Ao desenhar o Bolsa Família, em 2003, o governo Lula foi na contramão do que pregava o Banco Mundial. Os programas de transferência continuada então apregoados focavam somente na pobreza crônica; não visavam a um cadastro tão abrangente; propunham condicionalidades mais punitivas; e, na porta de saída, ignoravam as oscilações do mercado de trabalho. O Bolsa Família alcançou sucesso mundo afora tendo se beneficiado de contexto de expansão econômica e relativa inclusão social. Terminou como política pública alardeada pelo próprio Banco Mundial.

Trata-se de construção que ultrapassa divergências do espectro político-partidário. A transferência de renda recebeu ímpeto no governo Fernando Henrique com o nome de Bolsa Escola; expandiu-se e ganhou o mundo no governo Lula com o nome de Bolsa Família, com o qual ocupa ainda lugar de destaque, ao lado do mexicano Oportunidades, entre as inspirações para programas semelhantes implementados, em menor ou maior grau, em muitos países em desenvolvimento.

Nas eleições de 2018, todos os programas de governo dos candidatos presidenciais defendiam sua manutenção. Na prática, a partir de 2019, enquanto militares ampliaram ganhos e privilégios, os autodenominados liberais do governo executavam seus planos de redução de direitos, dificultando também o acesso e desvalorizando benefícios.

Com a pandemia, deu-se a virada: premido por circunstâncias alheias, impulsionado pelo Congresso Nacional, o governo federal teve que multiplicar por dez o volume de recursos, ainda que de maneira temporária, agora para o chamado auxílio emergencial. Chama atenção a capacidade que a Caixa Econômica Federal, ministérios e outras instituições demonstraram de estender, em pouco tempo, pagamentos a milhões de brasileiros.

O confinamento fez o mundo repensar o trabalho presencial, os sistemas de distribuição de mercadorias, o risco sanitário que transcende fronteiras e, por consequência, os determinantes sociais da saúde e da doença. Chamou atenção para estudos diversos que indicam haver espaço fiscal para países criarem pisos mais abrangentes de proteção social. Reforçou a necessidade de reformular bases e formas de arrecadação tributária. Entre outros temas, foi recolocada em pauta a pertinência das condicionalidades. Deve o cidadão que recebe um auxílio básico cumprir certos requisitos para continuar recebendo? Por que uns recebem e outros não?

Em termos normativos, esse debate foi superado com a sanção da Lei 10.835/2004, de iniciativa do então senador Eduardo Suplicy, que está em vigor. Por ela, ficou instituída a renda básica da cidadania. A lei diz que constitui "direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário". O benefício deveria ser igual para todos, pago em parcelas mensais. Desde então, tudo o que diz respeito à transferência de renda no Brasil pode ser entendido como uma etapa gradual que somente prioriza os mais necessitados diante das possibilidades orçamentárias, mas não muda o direito instituído para todos.

Não apenas na lei mas também na academia a discussão avança na síntese recente de Letícia Bartholo, Pedro H. G. Ferreira de Souza, Rodrigo Orair e Luis Henrique Paiva: "A adoção de uma renda básica de cidadania, universal, incondicional e suficiente para erradicar a pobreza nos livraria do receio de cair nas armadilhas do passado (...) Não podemos nos dar o direito de deixar de lado a experiência e as evidências empíricas e cair num debate paralisante".

Questão central é o financiamento. Qualquer política fiscal tem impactos distributivos. Em essência, é disso que tratam todos os programas de transferência: do papel do Estado em apropriar-se de parcelas da renda ou da riqueza a fim de distribuí-las de volta a cidadãos mediante formas acordadas coletivamente. Ora, há um imperativo moral (e constitucional) de eliminar a miséria e a fome no Brasil. O orçamento público deve, portanto, estar voltado a este objetivo. A mais simples e eficiente ação é abrir espaço para a renda básica incondicional.

Trata-se, ademais, de gasto que retorna ao governo sob forma de arrecadação resultante do aumento da demanda por bens e serviços. Há também ganhos gerais de bem-estar social, de fruição de uma vida mais livre, a liberdade positiva, com mais autonomia e segurança das pessoas diante da oferta de empregos precários e mal remunerados. A Rede Brasileira de Renda Básica a considera "a maneira mais viável de alcançar a justiça social através da distribuição de renda menos desigual e evitar o colapso do mercado de consumo, amenizando as consequências da 4ª revolução industrial".

As corporações e os mais ricos movimentam rendas, comércio e investimentos de forma a minimizarem impostos. Influenciam representantes no Executivo, no Congresso e pressionam o Judiciário. No caso do Brasil, é conhecida a estrutura tributária regressiva e injusta. Não é de improviso que funciona assim. Tampouco são inocentes as pressões que se fazem sobre o volume e a destinação do gasto público. No plano externo, os poderosos arbitram a seu próprio favor entre diferentes jurisdições nacionais, constrangendo a capacidade de ação dos Estados nesse e em outros temas. Para que haja, por exemplo, decisão de tributar grandes fortunas ou a atividade de grandes empresas transnacionais de internet, é preciso cooperação internacional intensa. Há que se ter, portanto, consensos internos e marcos internacionais abrangentes para abrir caminho para a instalação de uma tributação progressiva e uma renda básica.

"A pobreza é uma escolha política", conclui Philip Alston no documento que encerra seu mandato como relator especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos e que ganhou manchetes em todo o mundo. Embora a formulação não seja nova, Alston logrou aproveitar uma oportunidade rara para pautar o debate em termos atuais. Teria chegado a hora de avançar para a renda básica universal? O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, somando-se a Alston, relançou este debate, que agora carece de um promotor, um "campeão", entre os estados.

Malgradas as desfuncionalidades bolsonaristas, o patrimônio diplomático ainda pode, no futuro, dar ao Brasil legitimidade para cumprir este papel. Apesar da crise, permanecemos como um dos 10 maiores países em área, população, economia e biodiversidade. Temos inegável expertise no tema. A diplomacia brasileira já demonstrou habilidades em construir pontes e formar consensos internacionais.

O Brasil ainda é membro do Grupo dos 77, que defende a ampliação do debate na ONU sobre tributação mundial. Já liderou, juntamente com a França, discussões anteriores sobre meios alternativos de financiar o desenvolvimento. Ainda tem uma das maiores redes de embaixadas do mundo. Tornou-se, também, convidado regular de reuniões da OCDE, foro de caráter restrito no qual os países desenvolvidos por vezes procuram avançar nessa questão.

Ao longo do próximo mandato presidencial, o Brasil poderá ter a oportunidade de presidir o grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo, o G-20. Embora não seja universal, e esteja enfraquecido, o G-20 serve para a construção de consensos que em seguida podem ser apresentados aos demais países via Organização das Nações Unidas. Espera-se que a coalizão vencedora das próximas eleições torne este tema prioritário. Terá benefícios imediatos em termos de impacto social, legitimidade popular e uma agenda nacional e internacional positiva, inovadora e includente.

Seria pedir demais? "A resposta está soprando no vento", cantaria Eduardo Suplicy, grande defensor da renda universal, citando Bob Dylan como forma de indicar que a causa tem algo de autoevidente —seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista econômico.

Não parece ser algo para este governo, infelizmente. Para os tempos da política internacional, porém, 2023 está na esquina. Há esperanças. Tendo sido o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto escolhido patrono pelos diplomatas da turma de 2020 do Instituto Rio Branco, versos de "Tecendo a Manhã" acompanham esta contribuição ao debate público sobre política externa brasileira:

"Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão."

*Texto de autoria do núcleo responsável pela concepção do Programa Renascença https://www.diplomaciaparademocracia.com.br/programa-renascenca