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Descriminalizar mulheres é questão de vida --as lições da Argentina

8.mar.2020 - Manifestantes participam de ato a favor do aborto legal e gratuito em frente à Catedral de Buenos Aires, na Argentina. Os lenços da cor verde simbolizam a luta pelo direito de interromper a gravidez - Mariana Greif/Reuters
8.mar.2020 - Manifestantes participam de ato a favor do aborto legal e gratuito em frente à Catedral de Buenos Aires, na Argentina. Os lenços da cor verde simbolizam a luta pelo direito de interromper a gravidez Imagem: Mariana Greif/Reuters

Colunista do UOL

08/02/2021 04h00

Por Tabata Tesser*

Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, nasceu em Buenos Aires, no bairro das Flores. A capital argentina é berço do líder católico empossado no pontificado em 2013 e, também, palco histórico das grandes mobilizações da campanha pelo aborto legal que culminaram com sua aprovação, na madrugada de 30 de dezembro de 2020, pelo Senado argentino.

O projeto de lei que estabelece o aborto legal e seguro no país passou com 38 votos a favor, 29 contra e 1 abstenção. Os vídeos são emocionantes: panos verdes e canções vibrantes chacoalharam as ruas argentinas. A maré verde tomou conta do país: passou de uma "marolinha" para um tsunami. Vencedora, inspira a luta política feminista na América Latina.

Apesar da vitoriosa decisão na Câmara dos Deputados e no Senado, nem sempre a conjuntura política argentina esteve favorável a este tema. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina se iniciou em 2005, quando nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e Mendoza as mulheres decidiram que o aborto legal teria que ser pauta urgente na agenda pública.

Nos últimos 13 anos, foram apresentados sete Projetos de Lei na Argentina para que as pessoas com útero pudessem interromper gestações sem serem criminalizadas.

Em 2018, um dos projetos aprovados pela Câmara dos Deputados previa que o aborto poderia ser feito em qualquer clínica ou hospital e o governo arcaria com os custos do procedimento, fornecendo atenção psicossocial e cuidados médicos à pessoa que decidiu interromper a gravidez. Ao chegar ao Senado, o projeto foi rejeitado.

Na época, o papa Francisco atuou como agente político-religioso importante na construção retórica reacionária da agenda contra o aborto legal. Em declaração no Vaticano, chegou a comparar a prática de interrupção da gravidez ao extermínio executado pelos nazistas contra judeus, chamando de "luvas brancas" as pessoas que realizam aborto.

Não se trata evidentemente de política isolada do papa, que de resto se encontra também em meio a intensas disputas de poder em Roma. Nas últimas três décadas, o combate apocalíptico do Vaticano aos direitos sexuais e reprodutivos, ao casamento homoafetivo e à farsesca narrativa da "Ideologia de Gênero" produziu, no seio teológico da Igreja, conteúdos importantes sobre o tema.

Através de cartas aos bispos, encíclicas direcionadas aos fiéis, entrevistas do clero, homilias internacionais e até posicionamentos em 140 caracteres no Twitter, a Igreja Católica construiu uma "diabolização" do termo "gênero" estimulando uma agenda moralista contra o aborto e em defesa da cidadanização do feto. Uma verdadeira campanha transnacional de cruzadas antigênero, com foco na America Latina, como discutido pela pesquisadora Sonia Correa.

A "diabolização" do termo gênero ronda o Vaticano desde 1990. Trata-se de tentativa bem-sucedida de instalar um pânico moral nos fiéis com objetivo de defender um modelo de família tradicional heteronormativa e apresentar a reprodução como um dado "natural da vida humana", gerando uma automatização dos corpos para a capacidade reprodutiva. Diretamente, Bento 16 e Francisco nomearam o conceito de gênero como "diabólico", "demoníaco", "pecado contra Deus Criador".

Já João Paulo II caracterizou a "Ideologia de Gênero" como uma "cultura da morte", bojo narrativo no qual se encontra a pauta contra o aborto para a Igreja Católica.

Diante desse contexto, pode-se imaginar o tamanho da batalha travada em uma Argentina em crise econômica e assolada pela pandemia. A Igreja Católica argentina convocou, em março, na Basílica de Luján, uma missa no Dia Internacional da Mulher cujo tema era "Sim às mulheres, sim para a vida". O país se dividiu entre os azuis, contra a agenda pró-aborto, e os/as verdes, contra a criminalização das mulheres que decidam interromper uma gestação.

A demonização do projeto contou com uma unidade cristã entre correntes católicas e evangélicas. Agitavam panos azuis e brancos em defesa de um conceito de vida abstrato, inócuo e fraudulento. Em paralelo, artimanhas de influentes grupos conservadores buscaram de todas as formas barrar a aprovação do projeto.

Houve reação contra os fundamentalismos. No dia da votação no Senado, a Coalizão Argentina por um Estado Laico (Cael), fundada em 2009 por advogadas, antropólogas e filósofas feministas, distribuiu mais de 1.300 formulários para fazer pedidos de desligamentos da igreja na frente do Congresso.

Destoando do imaginário social de que a Igreja Católica só tem uma posição oficial, milhares de mulheres católicas feministas se somaram à Campanha por Aborto Legal e Seguro no país. Destaco a atuação das Católicas pelo Direito de Decidir da Argentina, que esteve presente na comissão de construção do projeto de lei de aborto legal e que construiu contra-narrativa de feministas cristãs afirmando que descriminalizar as mulheres é questão de vida.

Foi uma vitória marcante numa América Latina envolta nas trevas do uso político da religião para fins reacionários. Há fissuras, há caminhos, há esperanças. No país do Papa, o aborto legal finalmente virou realidade.

*Tabata Tesser é socióloga, feminista católica e mestranda em Ciência da Religião pela PUC/SP