Topo

Democracia e Diplomacia

Análise: A América do Sul ainda importa para a política externa brasileira?

Os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández participam de videoconferência em primeira reunião desde que o argentino foi eleito - Divulgação
Os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández participam de videoconferência em primeira reunião desde que o argentino foi eleito Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

09/12/2020 14h05

Por Flavia Loss de Araujo*

Instabilidade política no Peru, venezuelanos buscando nova vida em outros países, derramamento de petróleo na Amazônia equatoriana, acordos de paz mal resolvidos na Colômbia e o fechamento de fronteiras devido à pandemia de covid-19. Qual é a relação desses temas com o Brasil?

A resposta lógica, visto que são situações que ocorrem à nossa volta, é que, sim, são questões que afetam a vida dos brasileiros, direta ou indiretamente. Porém, o óbvio parece ter perdido terreno na política externa brasileira. Vivemos uma situação inédita de desinteresse em relação ao nosso entorno.

Desde a redemocratização, a política externa brasileira defendeu como uma de suas prioridades a cooperação econômica e política com nossos vizinhos. O Brasil mediou desavenças entre países e participou de processos de pacificação, atuando também como conciliador em crises institucionais domésticas, como no Paraguai em 1996 e na Venezuela em 2002. O respeito aos princípios de autodeterminação dos povos e não-intervenção, somado à habilidade de nossa diplomacia na construção de consensos, fizeram com que o Brasil se tornasse um parceiro confiável e influente na América do Sul (e além dela).

A faceta mais importante do engajamento brasileiro é o regionalismo. O Brasil colaborou ativamente na criação de projetos de cooperação regionais que estimulassem as economias e funcionassem como fóruns de discussão para questões comuns, em especial o Mercosul (1991) e a Unasul (2008), ambos guiados por convicções democráticas e de deferência aos Direitos Humanos. Ou seja, o Brasil já pavimentou, junto com os vizinhos, instâncias de diálogo e cooperação para o enfrentamento conjunto de crises. Com todas as limitações que possuem, são mais úteis do que a passividade diante dos problemas.

Ao analisarmos a situação dos dois blocos, percebe-se o recente distanciamento brasileiro. O Mercosul, conhecido pela importância comercial para os países membros, enfrenta momento de paralisia, visto que os governos das principais economias do bloco pouco dialogam.

Os presidentes da Argentina e do Brasil conversaram pela primeira vez no dia 30/11/2020, quase um ano depois do início da gestão de Alberto Fernández. Antes disso, estiveram juntos virtualmente apenas na reunião de cúpula do Mercosul de julho de 2020 e não trocaram nenhuma palavra. Enquanto se evitavam, a agenda bilateral acumulava problemas, e o Mercosul seguia sem estratégias ou planos para o futuro, situação que pouco deve mudar com essa aproximação tardia e superficial.

A outra opção de fórum regional seria a Unasul, projeto que tem como objetivo ampliar a concertação política entre os 12 países da América do Sul. As mais recentes notícias a seu respeito são desanimadoras: oito de seus doze membros desertaram, restando apenas a Bolívia, a Guiana, o Suriname e a Venezuela. O bloco foi criado por iniciativa de governos alinhados ideologicamente à centro-esquerda, mas contava também com representantes de outros espectros políticos, que atuavam de maneira pragmática na construção do projeto. Em contraposição à Unasul, posteriormente foi criado o Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), proposta de integração flexível sem instituições, sem burocracia e que ainda aguarda agenda concreta de cooperação.

Enquanto o regionalismo sul-americano enfrentava impasses, a pandemia acarretou enormes prejuízos econômicos e sociais. Na Europa, a cooperação regional foi intensificada. Do nosso lado do Atlântico, a Unasul foi lembrada por ter possuído entre os seus órgãos o Instituto Sul-Americano de Governo da Saúde (Isags), centro de estudos e formulação de políticas públicas que deveria pensar a saúde no âmbito continental. As atividades do Isags foram encerradas sem alarde em junho de 2019, meses antes da primeira onda de covid-19. Na ausência de diálogo e de coordenação, nossos países estão lidando com a pandemia de maneira individual e assim continuarão para negociar o acesso às vacinas. Depois, enfrentarão as questões logísticas para distribuição e armazenamento, a falta de insumos para vacinação e muitas outras dificuldades relacionadas ao tema.

Uma crítica recorrente, que acabou se tornando justificativa para que não sejam feitos esforços para o avanço do regionalismo sul-americano, é que iniciativas de integração são utópicas e não possuem capacidade concreta de resolver problemas. A crítica parece pertinente quando observamos os obstáculos da integração econômica, a falta de orçamento e o descompromisso dos governos da região.

Nossos avanços são tímidos quando confrontamos nossa realidade com a União Europeia, modelo de integração em vários aspectos mais avançado. Porém, se colocamos em perspectiva outras facetas do regionalismo para além da economia (como a já citada e essencial cooperação em saúde pública), e as comparamos com projetos de nível regional desenvolvidos na Ásia e no continente africano, fica evidente que o regionalismo é parte fundamental da solução de problemas comuns.

A integração não precisa ser aplicada da mesma forma, nos mesmos moldes ou em velocidades semelhantes, diante de realidades e níveis de desenvolvimento diversos. Ao menos no que se refere à pandemia, para ficarmos no exemplo mais próximo e dramático, os projetos palpáveis elaborados por essas outras regiões para contenção da doença mostram que a cooperação em áreas específicas é desejável e viável.

As limitações do regionalismo em meio a desarranjos e desacertos circunstanciais não justificam seu abandono por parte do Brasil, que é ator essencial no continente, mas estranhamente tem adotado postura apática diante de problemas como os citados no primeiro parágrafo. O Brasil será sempre afetado pela vizinhança e nossa diplomacia possui tradição e competência para articular respostas eficazes.

Não se trata de menosprezar relações com países de fora da América do Sul ou de minimizar o engajamento em temas multilaterais, mas de valorizar uma agenda de política externa sólida e necessária para o benefício do conjunto da população brasileira.

* Flavia Loss de Araujo é professora de Relações Internacionais na UNICSUL e doutoranda no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Integração da América Latina da mesma universidade e pesquisadora do Observatório do Regionalismo (http://observatorio.repri.org/)