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O Brasil na vanguarda do atraso

Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI - MIKE THEILER
Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI Imagem: MIKE THEILER

Colunista do UOL*

15/04/2021 04h00

"A política da vacinação é a política econômica mais importante". Dita recentemente por Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI (Fundo Monetário Internacional), essa frase nos convida a pensar mudanças nas relações entre o FMI e a política econômica brasileira.

Nos anos 1980, o papel do Fundo Monetário Internacional era central. Por um lado, a crise da dívida externa havia impossibilitado o padrão de financiamento do desenvolvimentismo. Por outro lado, a desorganização contábil e financeira do Estado e o acelerado processo inflacionário deixavam o Brasil muito vulnerável. Após uma sequência de "cartas de intenções" não cumpridas —ainda durante o regime militar— o país intensifica o processo de renegociação da dívida externa e, na virada da década, adere ao programa de "recomendações" liberalizantes.

Abertura comercial e financeira, privatização de estatais e uma quase criminalização do desenvolvimentismo, tido como ideologia atrasada, passaram a ser itens fundamentais da agenda econômica. Primeiro com Collor, de maneira atabalhoada, e depois de maneira mais gradual e complexa, como parte do Plano Real, um plano de estabilização que contava com mecanismos heterodoxos —e que não agradava os diretores do Fundo à época— mas que foi seguido por uma agenda de cunho liberal que rechaçava ideias de nação e desenvolvimento e pulava nos braços da avalanche financeira mundializada com boa dose de otimismo.

Junto —e não apesar— com o sucesso no controle inflacionário, o Brasil experimentou um salto no nível do endividamento público. Ocorreu parte por conta do reconhecimento de dívidas passadas e saneamento dos estados, parte também por razões financeiras e macroeconômicas. A política cambial e de juros - indissociáveis que são - ajudaram a criar um salto na DPMFi (Dívida pública mobiliária federal interna), gerando uma espécie de estrangulamento financeiro do Estado brasileiro. Assim, dada a estrutura orçamentária brasileira, o investimento público foi a rubrica mais penalizada, despencando para os menores níveis da série histórica, enquanto o gasto financeiro disparou. A partir desse momento o mantra do "ajuste fiscal" e o compromisso com metas de resultado primário não mais saíram da agenda, salvo em períodos específicos, quando passam a ser contornados.

Pouco lembrada pela grande imprensa, a presença do FMI se manteve forte durante a segunda metade da década de 1990. O governo brasileiro sob Fernando Henrique Cardoso contraiu dívida com o Fundo diversas vezes, solicitando recursos diante das turbulências financeiras em 1998, na transição do primeiro para o segundo mandato, mais uma vez em setembro de 2001, e, por fim, novo empréstimo em 2002 às vésperas da transição de governo. Todos acordos fechados com o Fundo continham condicionalidades ligadas ao compromisso de ajuste das despesas não financeiras do Estado.

O governo do Partido dos Trabalhadores, iniciado em 2003, também se comprometeu com as condicionalidades acordadas em 2002, entregando um superávit primário até maior que o exigido. Nesse momento parecia que o mantra do ajuste fiscal intermitente havia sido cravado em pedra. Eis que, em meados de 2005-2006, por uma conjunção de fatores internos e externos começa-se a produzir uma pequena inflexão na política fiscal, que passa a buscar "espaço fiscal" para ampliação das rubricas de investimento público. Inicialmente conversadas com o próprio FMI, certas medidas que visavam contornar as restrições fiscais impostas pela meta do resultado primário, por meio do PPI (Projeto Piloto de Investimentos) vão ganhando corpo até desaguarem no PAC 1 (2007) e PAC 2 (2011). Em paralelo, consequência da política de acúmulo de reservas que se iniciava, foi realizada quitação adiantada da dívida com o FMI, o que ampliou significativamente a autonomia da política econômica diante do Fundo e dos credores externos.

A história que vem depois é mais ou menos conhecida e muito mal contada. Reversão no cenário internacional, medidas de política econômica equivocadas ou mal calibradas, pressão do setor financeiro e uma crise política que ainda não se resolveu produziram um emaranhado de questões jurídicas, técnico-administrativas e político-partidárias. O esgotamento do ciclo de crescimento econômico e as medidas de ajuste fiscal tentadas por Dilma Rousseff se deram no mesmo contexto da crise política, produzindo conflitos com o Parlamento e o rápido esvaziamento de sua base de apoio. Construiu-se nesse momento uma ampla coalizão contrária ao governo e buscou-se, junto ao TCU e outros órgãos, um "fato jurídico" para derrubá-lo. Com a popularidade em baixa e manobras conspiratórias contrárias ao governo em alta, "créditos suplementares" não autorizados e atrasos nos repasses do Tesouro para bancos públicos ("pedaladas fiscais") bastaram. A historiografia e a disputa de narrativas ainda estão em aberto e não vou entrar aqui em polêmicas sobre golpe, crime de responsabilidade e justeza dos processos políticos. O ponto que quero ressaltar é o seguinte: desde então a narrativa econômica hegemônica no Brasil constrói um retalho daquelas questões a fim de incutir no imaginário comum uma visão que deslegitima ou até criminaliza o gasto público.

Como é sabido, o partido de Dilma Rousseff foi apeado do poder e o conjunto de técnicos do alto escalão da área fazendária que flertam com uma visão keynesiano-desenvolvimentista foi varrido dos aparelhos de Estado. A partir de então, a pecha de irresponsabilidade fiscal tem sido injustamente atribuída a todo e qualquer pensamento que ouse ponderar diante do diagnóstico reinante segundo o qual todos os problemas do país derivam do excesso de gastos públicos. Essa tese da "emergência fiscal" vem alterando o arcabouço fiscal do Estado brasileiro e subordinando toda a política econômica a ela. Exemplos são a política de devolução de dinheiro do BNDES para o Tesouro, esvaziando o papel do Banco de fomento em pleno período de desaceleração econômica, e a aprovação da EC-95, o chamado "teto de gastos", que coloca na Constituição uma regra que inviabiliza políticas fiscais anticíclicas.

E aqui peço desculpas ao leitor pela digressão histórica e retorno ao meu ponto inicial: O FMI e o contexto atual.

Desde a crise de 2008 o FMI tem revisto suas recomendações macroeconômicas e reconhecido o papel central da política fiscal como instrumento temporário de manutenção do nível de emprego e renda dos países. Nesse momento de calamidade humanitária global o Fundo tem sido claro em suas recomendações: É hora de gastar.

Não apartado do cenário internacional, nosso contexto atual é marcado por elevado desemprego e capacidade ociosa. No entanto, nem um quadro com dezenas de milhões de desempregados, desalentados e pessoas em trabalho precário, em meio à emergência social e humanitária, é capaz de reverter a política econômica. Isto porque o arcabouço fiscal impõe uma política macroeconômica equivocada. Houve, é verdade, e a contragosto do governo, uma grande expansão em 2020, viabilizando créditos e o pagamento do auxílio emergencial. No entanto, notem, com muita dificuldade em contornar o conjunto de regras fiscais. Uma das saídas naquele momento, e que não se repete agora, foi a aprovação do chamado Orçamento de Guerra. Já o orçamento fictício para esse ano, novamente, demonstra que o sacrossanto teto de gastos não funciona. É, aliás, um escândalo corriqueiro ver o governo criando subterfúgios para contornar uma regra que não funciona ao mesmo tempo em que jura ao mercado e seus porta-vozes que respeita a regra farsesca.

É preciso dizer com todas as letras: a política econômica de uma nação afundada em desemprego e caos humano e sanitário não pode ficar subordinada aos humores do "mercado", um conjunto de agentes que operam numa lógica de curto prazo incapaz de olhar para além da ponta da curva dos juros futuros negociados no fechamento de cada dia.

Setor privado retraído e caos sanitário exigem ação imediata do Estado disponibilizando renda para sua população e viabilizando o distanciamento social necessário enquanto corre atrás de vacinação em massa. É preciso coordenação e ampliação da capacidade do SUS, e não sua redução. Portanto é preciso não apenas investimentos, mas também gastos de custeio. Se as regras orçamentárias não permitem isso, as regras devem ser mudadas. O resultado fiscal e contábil do setor público deve servir ao país, e não o contrário.

Se, como afirma o FMI, a hora é de vacinação complementada por gastos governamentais, o Brasil hoje de fato não é subserviente às ideias do Fundo. Os burocratas em Washington evoluíram, enquanto nós retrocedemos. Por ironias da história, as amarras para conter nossa tragédia são coisa nossa. Sob o comando de paleoliberais, o Brasil lidera mortes por covid e é vanguarda do atraso na orientação da política econômica.

*Felipe Calabrez é doutor em Administração Pública e Governo pela FGV