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OPINIÃO

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Caminhos do desmonte de políticas públicas no Brasil

Andressa Anholete/AFP
Imagem: Andressa Anholete/AFP

Colunista do UOL

21/06/2022 14h20

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Janine Mello*

Falar de desmonte de políticas públicas tem sido cada vez mais comum no debate público e em estudos acadêmicos nos últimos anos. Publicações como o livro Dismantling public policy: preferences, strategies and effects (2012), de Michael Bauer e co-autores, renovaram esse debate influenciando uma série de análises feitas a partir de então. Muitas delas impulsionadas pelas mudanças provocadas pela ascensão de governos populistas em diversos países e seus efeitos sobre a ação do Estado. Em grande medida, essas mudanças resultaram em movimentos de reorganização ou reorientação de várias áreas de políticas públicas marcados pela redução, paralisação e mesmo extinção de políticas e programas governamentais como observado no Brasil no período recente.

Políticas públicas nunca estiveram imunes à mudança política, social e econômica. Questões ligadas ao ambiente institucional, mudanças na correlação de forças, emergência de crises, eventos externos e relações de conflito entre atores que transitam na arena de produção de políticas públicas possuem impacto direto sobre as condições de estabilidade da ação governamental.

Apesar disso, mais do que entender como ocorrem as mudanças, estudos sobre desmonte de políticas públicas buscam compreender direções específicas nessas variações que implicam na redução, paralisação e extinção de políticas e seus arranjos de funcionamento. Mais do que isso, exploram os motivos que levam governantes a optarem por estratégias de desmonte e quais ganhos políticos atribuem ao seu engajamento nesses processos.

Quando nos deparamos com esforços disseminados de desmonte é posta em xeque a ideia de que políticas seguem sempre um caminho de desenvolvimento em direção ao seu aperfeiçoamento. O que nos lembra o papel da política e do conflito na definição dos rumos da atuação estatal e da estruturação de ações governamentais.

Em contraposição a mudanças pautadas por dinâmicas de maior incrementalidade e caráter cumulativo - como aquelas observadas no período pós Constituição de 88 -, rupturas abruptas e descontínuas chamam a atenção e mobilizam preocupações em torno do que seria necessário para garantir maior robustez e resiliência às políticas e evitar retrocessos em torno dos avanços já alcançados pelas diferentes áreas governamentais.

Ao tratarmos de processos de desmonte de políticas, a questão não gira mais em torno daqueles aspectos que, no transcorrer do desenvolvimento de uma área governamental, ficam para trás, são alterados ou substituídos, e sim daqueles processos marcados pela intencionalidade na desestruturação ou reorientação de como a política é formulada e implementada.

No entanto, se é disso que estamos falando, qual a novidade em falar de desmonte agora e por que efetivamente isso tem sido entendido como um problema? O que diferencia os atuais processos de desmonte em relação a situações pregressas de mudanças em políticas públicas rumo à extinção ou reorganização de áreas e ações específicas?

É possível argumentar que o que caracteriza os desmontes observados no período recente seriam os graus de intensidade e densidade das mudanças. Enquanto a densidade se refere à quantidade de políticas e instrumentos abolidos, a intensidade diz respeito a mudanças de público-alvo, áreas de abrangência, restrições de equipes e capacidade de implementação das políticas.

Desse modo, o que distingue o momento atual de situações anteriores de mudança seria a diversidade de áreas afetadas, a abrangência da desestruturação e, de alguma forma, a rapidez com que arranjos e estruturas institucionais construídos ao longo das últimas décadas foram colocados sob questionamento e revisão no período recente. Não se trata de como ano após ano foram editadas medidas de aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde que contribuíram para sua gradual consolidação e sim de como a recente profusão de medidas legais tem descaracterizado a lógica de funcionamento de setores inteiros, como vem ocorrendo na área ambiental e de direitos de povos e comunidades tradicionais, por exemplo.

Diante desse cenário, é fundamental entender o que permite que tantas áreas e políticas sejam submetidas a processos de desmonte em tão curto período e que o arcabouço institucional existente no país tenha sido insuficiente na capacidade de responder a esses processos nas diversas áreas governamentais.

Cabe ressaltar que 'o desmonte' não surge como fenômeno coeso, único e unidimensional, e sim sob a forma de processos de desmonte que variam entre áreas e tipos de políticas e em relação ao contexto institucional no qual se inserem e com o qual se relacionam. Aspectos como o envolvimento de múltiplos atores e instâncias nos espaços e momentos de configuração e execução das políticas; assim como o grau de institucionalização ou as estratégias de direcionamento adotadas pelas políticas são condicionantes relevantes para entender como se deram os processos de desmonte dos últimos anos.

Vale questionar em que medida determinadas condições institucionais que configuram a produção de políticas públicas no Brasil facilitam ou dificultam o desmonte em diferentes áreas. Nessa linha, destaco três aspectos para os quais deveríamos olhar ao analisar as possibilidades de fortalecimento da atuação pública diante de esforços de desmonte.

Em primeiro lugar, arranjos de formulação e implementação de políticas centralizados na esfera federal - com baixo envolvimento de atores subnacionais ou localizados fora do escopo estatal como a sociedade civil e atores privados - tenderiam a contribuir para a baixa resistência diante da descontinuidade de uma política. Programas que dependem unicamente da atuação da União e que não contam com estruturas de gestão multinível ou multiatores teriam custos mais baixos para serem descontinuados.

Em segundo, áreas marcadas por baixo grau de consolidação e institucionalização de seus temas, processos de operacionalização, lógicas de execução e instrumentos normativo-legais seriam potencialmente menos resilientes a esforços de extinção e paralisação de políticas e programas. Isso vale para áreas ligadas, por exemplo, aos direitos humanos, à igualdade racial, étnica ou de gênero, entre outros temas.

E, por último, a adoção de estratégias governamentais sem conexão e convergência com dinâmicas territoriais, regionais ou coletivas também contribuem para fragilizar a resiliência e robustez das políticas.

Obviamente, não há configuração formal, procedimental ou simbólica que evite, de maneira incondicional, movimentos de desmonte intencionalmente direcionados a determinadas áreas ou políticas. Mais uma vez, trata-se de não subestimar a dimensão política e suas repercussões sobre a definição do rol de políticas em andamento em determinado momento, ambiente e território e como se relacionam com o contexto institucional e as correlações de forças que o constituem. Apesar disso, é mais urgente que nunca debater sobre quais estratégias poderiam ser adotadas visando ampliar a estabilidade e a sustentabilidade das políticas e dirimir os impactos provocados pela descontinuidade de intervenções governamentais capazes de atuar sobre problemas estruturantes, que nos configuram enquanto país, como as múltiplas desigualdades que impedem o pleno desenvolvimento socioeconômico brasileiro.

*Janine Mello é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, doutora em Sociologia, já atuou em órgãos como Casa Civil da Presidência da República e no antigo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Atualmente é pesquisadora do Ipea.

**Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.