Topo

Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Governança e gestão pública: o legado nefasto de Bolsonaro

Reforma administrativa só anda depois do carnaval com instalação da CCJ da Câmara - Ricardo Moraes/Reuters
Reforma administrativa só anda depois do carnaval com instalação da CCJ da Câmara Imagem: Ricardo Moraes/Reuters

Colunista do UOL

18/11/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Marcelo Viana Estevão de Moraes*

O arcabouço normativo sofisticado do modelo de governança e gestão pública virou peça de ficção por falta de patrocínio político e coordenação administrativa, restando um cenário de terra arrasada.

Foi montado no governo Bolsonaro, a partir de iniciativas herdadas de administrações anteriores, um modelo de governança e gestão pública que é formalmente sofisticado, mas que não saiu do papel por falta de respaldo político e coordenação. Na vida real, o cenário é de terra arrasada, apesar da resiliência da máquina pública.

Em termos normativos, o sistema federal de governança e gestão é uma construção robusta, que reúne de modo abrangente todo o planejamento, a execução e o controle governamental no marco de uma governança estratégica, sob uma narrativa racionalizadora, virtuosa e voltada para resultados. Na prática, sobraram ações voluntaristas e amadoras, movidas a casuísmos, vocacionadas para o demérito e a incompetência, cujo efeito real foi a desorganização da administração pública federal.

O governo Bolsonaro herdou da gestão Temer um sistema de governança da administração federal nucleado no Centro de Governo e os contornos gerais do que deveria ser uma estratégia nacional de desenvolvimento econômico e social (ENDES) de longo prazo que orientaria o conjunto dos planejamentos setoriais de curto e médio prazo, integrando-os organicamente.

Os esboços da ENDES foram consubstanciados no governo Bolsonaro na Estratégia Federal de Desenvolvimento - EFD. Em tese, os eixos da EFD agregariam os problemas que o governo brasileiro deveria enfrentar, representando os grandes campos de políticas públicas que se estruturariam em torno desses problemas. A EFD cumpriria a função de orientar, articular e influenciar as discussões dos demais instrumentos de planejamento (PPA; planos nacionais, setoriais e regionais) e de orçamentação (LDO; LOA).

Nesse contexto, foi instituído compulsoriamente no âmbito do governo federal o planejamento estratégico institucional (PEI) como uma camada gerencial do sistema de planejamento focado na gestão das organizações públicas. O sistema de governança pública, articulado por meio de comitês em toda a administração federal, deveria assim promover e coordenar a gestão estratégica federal com base no seguinte tripé: comitês internos de governança como instâncias decisórias de cada órgão ou entidade; os PEIs como expressão organizacional do planejamento governamental; e as unidades setoriais e seccionais de gestão estratégica, com funções executivas, operacionais e de suporte.

Assim, na narrativa normativa ficaria articulado idealmente o sistema de planejamento e orçamento, de natureza programática, centrado no PPA, com um sistema de governança estratégica, que teria no planejamento institucional o seu vetor gerencial. Em tese, o modelo permitiria conciliar as especificidades do planejamento programático com as singularidades do planejamento organizacional, mediante a solda de um sistema de governança e gestão capitaneado pelo Centro de Governo. O problema é que esse arranjo não avançou por falta de vontade política e de coordenação governamental na consecução das prioridades formalmente definidas como estratégicas.

Esse sistema complexo de governança, que foi sendo decantado em décadas de erros e acertos, alcançou um estágio de maturação formal, com respaldo na legislação pertinente e com as simpatias das áreas de controle externo e interno (TCU e CGU). Paradoxalmente, isso ocorreu justamente quando o governo federal abdicou de ter um Centro de Governo que assumisse o protagonismo da coordenação governamental. As pastas ministeriais palacianas que deveriam cumprir esse papel de condução das prioridades foram sucateadas pela alta rotatividade de titulares, pela prática clientelista e pela nomeação de indivíduos cujo predicado maior era o alinhamento incondicional a delírios ideológicos.

A grande ilusão burocrática foi que um sistema dessa magnitude pudesse funcionar à revelia da política. Sem o sopro da política, foi um corpo sem vida, reduzido a uma liturgia estéril que desviou recursos vultosos de outras finalidades em um grande jogo de faz de conta.

O Centro de Governo na administração Bolsonaro colapsou. Não apenas não cumpriu a tarefa de coordenar, como também atuou para fazer da coordenação político-administrativa um recurso ainda mais escasso, em prejuízo da governança e da gestão. O advento do orçamento secreto, com as suas peculiaridades alocativas e executivas dos parcos recursos disponíveis para o gasto discricionário, representou a antítese de qualquer estratégia de desenvolvimento, planejamento governamental, governança estratégica ou excelência gerencial. Para além disso, houve o desmonte de políticas públicas e instituições, a perseguição a servidores de carreira, o cerceamento da transparência pública e a implosão de estruturas colegiadas que cumpriam o papel de articular esforços e parcerias entre a administração e a sociedade civil.

O resultado foi um governo sem entregas que, no desespero sucessório, se perdeu no descalabro fiscal, na compra de apoio e em ações fragmentadas: enfim, um legado maldito.

O esperado é que, no terceiro governo Lula, haja um retorno à normalidade, apesar das enormes dificuldades, com o advento de uma gestão preocupada com o desenvolvimento nacional, a satisfação das necessidades sociais, a coordenação de governo, o desempenho gerencial e o fortalecimento das políticas públicas. Que os avanços formais não se percam, mas que encontrem agora materialidade em uma agenda de gestão pública que conjugue vontade política, prioridades estratégicas, articulação transversal e foco em resultados.

*Marcelo Viana Estevão de Moraes é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) do governo federal, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, pesquisador do Centro de Altos Estudos de Governo e Administração - CEAG/UnB, e autor do livro A Construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul (Appris, 2021). Foi Secretário de Gestão (2008/2010) e Secretário de Previdência Social (1994/1999) no governo federal.

**Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.