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OPINIÃO

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Portadores de doenças raras e a batalha pelo acesso à saúde

Colunista do UOL

30/11/2022 15h02

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Marco Antonio de Paula Filho*
Vanessa Elias de Oliveira**

Constantemente são veiculadas notícias e matérias jornalísticas que abordam a falta de acesso ao tratamento em saúde sofrida pelos doentes raros e a luta dos seus familiares em busca de superar essas barreiras de acesso. Quando os casos de inacesso à saúde chegam nas supremas cortes costumam ganhar maior visibilidade na mídia, como foi em 22 de maio de 2019, em que o STF decidiu sobre o fornecimento público dos medicamentos de alto custo.

A discussão traz para o campo de políticas públicas um antigo paradoxo em torno da ideia de universalidade e integralidade no atendimento do Sistema Único de Saúde. As perguntas que levam para esse paradoxo são: 1. Devemos sacrificar grande parte do orçamento destinado à saúde para atender um número muito pequeno de pessoas? 2. Seria justo o Sistema Único de Saúde negar o direito de alguns cidadãos de terem seus tratamentos garantidos, com a justificativa de otimizar recursos? Ora, a Constituição de 1988 garante, no artigo 196, o acesso universal e integral à saúde. Além disso, a Portaria nº 199 de 2014 institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, garantindo aos pacientes o direito ao tratamento.

Segundo o Ministério da Saúde, as doenças raras são aquelas que atingem 65 pessoas a cada 100.000 indivíduos, sendo que temos, no Brasil, em torno de 13 milhões de pessoas vivendo com doenças raras. Devido ao número restrito de usuários para cada droga comercializada, há um baixo interesse dos laboratórios por desenvolverem novas tecnologias em saúde ou produzirem drogas equivalentes às produzidas por outros laboratórios (o que não é comercialmente interessante), gerando monopólios em que poucas ou apenas uma indústria produz um determinado medicamento. Essas drogas são denominadas "medicações órfãs".

Para além da questão do acesso ao tratamento, interessa para as políticas públicas a compreensão dos atores e estratégias que são mobilizados pela sociedade em busca de disputar determinada política. No caso das doenças raras, as Associações de Pacientes ganharam um protagonismo na luta pela garantia do acesso ao tratamento.

Essas Associações de Pacientes de Doenças Raras costumam agregar indivíduos, em sua maioria familiares dos pacientes, movidos pela necessidade coletiva de aliviarem os seus sofrimentos psíquicos e físicos sofridos pelo acometimento da doença. Em seus discursos, afirmam que estão "batalhando", "enfrentando" e "lutando" pela melhora na qualidade de vida. Elas difundem informações e experiências do cotidiano, ajudam materialmente famílias mais vulneráveis, organizam palestras com especialistas e buscam articular com o poder público formas de institucionalizarem as suas demandas.

As associações e sua atuação foram o objeto de estudo da pesquisa realizada no âmbito do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFABC, "Atuação das Associações de Pacientes de Doenças Raras na Garantia do Direito à Saúde: estratégias de interação com o Estado". O estudo buscou mapear como se dão as relações das Associações de Pacientes de Doenças Raras com as instituições estatais, buscando compreender os mecanismos de luta por direitos existentes, assim como os processos pelos quais elas são e estão submetidas.

A pesquisa aplicou 32 questionários com diferentes Associações de Pacientes de Doenças Raras, buscando visualizar as interações realizadas por elas com os diferentes poderes: Executivos e Legislativos (municipais, estaduais, federais), Conselhos de Saúde, Ministério Público, Prefeitos, Governadores etc.

Os dados mostram que embora a interação das Associações com o Poder Judiciário esteja bastante presente (sobretudo através do Ministério Público), é com o Poder Executivo, em especial no nível estadual, que elas mantêm maior diálogo, em especial com a Secretaria Estadual de Saúde. Além disso, o diálogo é constante também com o Ministério Público. Das 32 Associações respondentes, 21 mantêm diálogo regular com a Secretaria Estadual de Saúde, ao passo que 19 o fazem com o Ministério Público. Quando perguntadas sobre a frequência de interlocução com cada poder, cerca de 40% dos grupos entrevistados disseram possuir a máxima frequência de interlocução com as Secretarias de Saúde, seguido do Ministério Público com 22%, empatando com o Ministério da Saúde. Isso significa que o Executivo estadual tem sido acionado e, quando não obtém respostas, o Ministério Público é procurado para a resolução (extra)judicial dos problemas atinentes ao acesso à saúde.

Vale destacar que existem dois momentos diferentes de interlocução das Associações com o poder público, podendo ser quando a Associação demanda do Estado a incorporação de um novo tratamento, ou quando luta pela manutenção de um tratamento já conquistado que, por diferentes motivos, está em falta ou com falha na distribuição.

A reivindicação por um novo medicamento pode ser feita por alguns caminhos. Um deles se dá pelo processo de incorporação pelo SUS, que costuma ser longo e demorado: abre-se um processo para o registro sanitário junto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em seguida a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) proporá, com base em estudos e avaliações, a atualização, exclusão ou inclusão do novo tratamento nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs).

O outro acontece pela via judicial, quando um paciente aciona a justiça individual ou coletivamente. Quando a reivindicação acontece por uma falha no fornecimento de um medicamento que já consta no PCDT, segundo relatos de Associações, antes de entrar com o processo judicial contra o Estado, através do Ministério Público, busca-se contatar e registrar uma reclamação administrativa na Secretaria de Saúde, que apresentará o diagnóstico do problema e um prazo para regularização da distribuição.

Essas são as principais estratégias utilizadas pelas Associações de Pacientes para conseguirem o direito de acesso à saúde para os doentes raros. Conforme a discussão dos resultados apresenta, ainda há muito a se compreender sobre a relação entre Estado e associações de pacientes de doenças raras na luta pelo acesso à saúde no Brasil. Apesar disso, fica claro que tais associações são importantes canais para o estabelecimento de redes de diálogo e difusão de informações e, sobretudo, têm auxiliado os portadores de doenças raras a acessar tratamentos pelo SUS, algo estabelecido no princípio da integralidade do sistema, mas nem sempre garantido na prática.

* Marco Antonio de Paula Filho é pesquisador bolsista FAPESP na Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP), mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

** Vanessa Elias de Oliveira é doutora em Ciência Política pela USP, professora associada da UFABC e pesquisadora CNPq.