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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os caminhos do terceiro governo Lula

Colunista do UOL

17/11/2022 11h18

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Jorge Chaloub*

Previsões sobre o futuro são um terreno incerto, no qual erros grosseiros despontam não apenas como uma possibilidade remota, mas enquanto um risco real. As feições das eleições de 2022 tornam necessário este exercício intelectual.

Os últimos anos fizeram do pleito do final de outubro mais do que a decisão do ocupante do Palácio do Planalto, nos próximos quatro anos, ou do que uma disputa sobre perfis de políticas públicas: estivemos diante de uma decisão sobre o futuro da ordem democrática instituída a partir de 1988. Se por uma margem apertada a maioria da população decidiu pela continuidade da República de 1988, ou ao menos pelo que se manteve dessa experiência política, não foi apenas com a expectativa de repetir um passado idílico, mas também por pensar na atual ordem política como capaz de produzir novos futuros. Dentre os bons pontos do último livro de Marcos Nobre sobre os caminhos da democracia brasileira, "Limites da Democracia", está a ideia de que não superaremos a crise democrática dos últimos anos reconstruindo um passado perdido. As inevitáveis mudanças sociais e os limites da ordem de 1988 exigem novos horizontes e perspectivas. Pensar sobre o futuro é, portanto, urgente.

As ideias de futuro não surgem, todavia, como uma necessária ruptura radical com o passado. Cenários de crise muitas vezes expulsam certo passado pela porta enquanto permitem, por vezes sem plena clareza, que outro retorne pela janela. A retomada das experiências pregressas nunca é a mesma e quase certamente fracassa quando parte de tal pressuposto. Nem que seja pela inevitável mudança da sociedade ou dos atores, a emulação de passados sempre se reconstrói em chave diversa e atualizada.

Justamente por isto, as especulações deste texto partem das experiências políticas da República de 1988, ou seja, do passado, para imaginar possíveis caminhos para o governo Lula. O pressuposto não é que elas serão fielmente repetidas. De fato, o mais provável é que elas produzam, por outro lado, consequências bem diversas das suas manifestações anteriores

Ante os eventos políticos dos últimos anos e as atuais feições da disputa política brasileira é possível traçarmos em três grandes cenários prováveis para o futuro governo Lula: (1) a tentativa de retorno ao neoliberalismo progressista dos anos 1990, (2) a retomada em novo cenário do liberalismo social dos governos petistas e (3) a construção de uma frente ampla, próxima à forma das Diretas Já, mas com um maior protagonismo das esquerdas.

Os caminhos dependem da coalizão político-social do governo, aqui pensada não apenas com base no Congresso Nacional ou nos partidos políticos, mas também a partir do apoio das classes sociais, frações de classe, corporações, dentre outros atores. Ou seja, a imagem do governo dependerá das formas de construção da sua legitimidade social.

Um governo Lula neoliberal progressista cumpriria o desejo das principais vozes da grande mídia, impressa e televisiva, e da parte da burguesia menos próxima do governo Bolsonaro. O vice-presidente Geraldo Alckmin, a candidata derrotada Simone Tebet e alguns quadros técnicos historicamente ligados ao PSDB provavelmente teriam grande destaque. O eixo das ações governamentais seria manter as políticas sociais do petismo, aumentar a institucionalização das políticas de transferência de renda, que ganharam apoio público com o caos social da pandemia, e retomar uma política econômica marcada pela rigidez fiscal e pelos superávits primários.

Para além da dificuldade de equacionar caminhos dificilmente conciliáveis, a escolha teria que lidar com os sérios riscos de impor medidas impopulares em um cenário no qual há forças social e politicamente relevantes que defendem explicitamente uma ruptura democrática. A normalização de discursos e práticas golpistas, assim como seu apoio por parte das polícias e Forças Armadas, sugerem que um governo impopular enfrentaria grandes dificuldades para se manter de pé. Por outro lado, não seria simples para um governo petista justificar a implantação de políticas sociais mais tímidas do que as dos últimos mandatos ou impor, ao menos nos primeiros anos, reformas com grande potencial de fortalecer discursos e manifestações oposicionistas. Não somente a conjuntura econômica é outra, como o governo não nutre do mesmo trânsito entre as elites políticas e econômicas que a coalizão tucana dos anos 1990. Os riscos de lidar com movimentos de rua de ultradireita, guiados pelo bolsonarismo ou por alguma outra vertente do campo, seriam enormes.

O segundo cenário sugerido se aproxima do tom da campanha petista, que prometeu reeditar as iniciativas bem-sucedidas dos trezes anos do partido à frente da presidência. Mesmo que se distancie das apostas mais heterodoxas do Governo Dilma, a defesa de um Estado mais protagonista nas obras públicas e políticas sociais quase certamente produzirá, já a princípio, mais críticas da mídia, que ainda relaciona com frequência Estado, ineficiência e corrupção. O empresariado mais próximo do setor de serviços, por vezes próximo do bolsonarismo e, em outras, encantado pelas últimas modas do libertarianismo, provavelmente aumentaria não apenas suas críticas, mas também suas mais recentes práticas de financiamento de protestos. A oposição tende, neste cenário, a conjugar com mais frequência linguagens políticas neoliberais e libertárias, em chave próxima do que ocorreu em 2015 e 2016, e talvez veja parte da sua base popular mobilizada por motes conservadores, com forte presença de evangélicos e forças policiais, ser ao menos moderada pela dimensão redistributiva da política social lulista.

A intensidade do atual conflito social, com grande força de atores e discursos de ultradireita, e o amplo questionamento da legitimidade política da esquerda petista por atores da direita tradicional do pós-1988, o que em parte coloca em risco a própria ordem democrática brasileira, tornam, contudo, difícil a repetição dos caminhos de 2002, 2006 ou 2010. O arranjo político lulista presumia uma conciliação entre classes, frações de classe e corporações que dificilmente pode ser reproduzida na atual conjuntura.

Surge, então, um possível terceiro caminho, que foi esboçado na campanha e nos discursos de Lula. O modelo passaria pela reedição de um modelo de frente ampla próximo ao das Diretas Já, mas com uma inovação: à frente da coalizão não estaria um líder de centro com inclinações conservadores, como Tancredo Neves, mas alguém que, mesmo marcado por uma prática política conciliatória, tem uma trajetória de claras marcas de esquerda. Isto aumenta sensivelmente as dificuldades, mas, por outro lado, permite vislumbrar outros caminhos.

O que seria impensável anos atrás se tornou possível pelas amplas mudanças dos últimos anos e pelo resultado das eleições. As forças da direita e da centro-direita, sobretudo as que serviram de fiadoras à República de 1988, foram as principais vítimas da expansão da ultradireita. Enfraquecidas como nunca, elas não têm perspectivas de curto prazo de liderar à frente da Presidência uma coalizão entre centro-direita e direita, como a composta por PSDB e PFL, ou mesmo de funcionar como principal força da oposição. O único lugar hoje disponível para as forças da direita tradicional ou da centro-direita é o de sócio menor do petismo ou da ultradireita. Ante a explícita oposição entre a ultradireita e qualquer modelo de democracia, não apenas a aqui construída após 1988, a escolha por este caminho, trilhado por muitos ao longo do Governo Bolsonaro, representaria uma aposta demasiada alta para atores que tiram parte do seu poder da institucionalidade democrática.

Mesmo ante tal cenário, a tarefa promete enormes dificuldades. Não é simples construir um governo ao lado dos opositores de ontem e manter a ideia de que o essencial da identidade petista foi mantido, ainda mais em tempos de forte popularidade de narrativas antissistema. O protagonismo de Lula provavelmente não conseguirá suplantar as usuais limitações das frentes amplas. A tarefa é ainda mais árdua quando feita em meio aos escombros institucionais do bolsonarismo e sobre ataque de forças organizadas, ansiosas por destruir não apenas o governo ou a esquerda, mas a própria democracia de 1988. Há boa dose de incerteza sobre as principais diretrizes políticas dos próximos quatro anos e alguma margem para a criação contingente da política, mas talvez esta seja a aposta que permita, em meio a crise do presente, chegarmos a 2026 em uma democracia.


*Jorge Chaloub é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

**Esse texto é fruto de uma parceria entre a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Coluna Diálogos Públicos.