Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A mão invisível do estado profundo
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Afonso Oliveira de Almeida*
Em A Riqueza das Nações, Adam Smith desenvolveu sua gramática econômica antiestatal apoiado em conceito quase incontraditável, o da mão invisível do mercado. Como rebater um ente da família dos fantasmas?
Segundo Smith, os mercados se regulam e se ajustam. Mesmo que os agentes econômicos não estivessem operando com interesses iguais, os produtores e os compradores funcionariam em um sistema que se equilibra, encontrando volume de produção e preço naturalmente.
A jusante, a teoria de Smith sucumbiu a racionalidades novas. Externalidades, assimetrias de informação, oligopólios, monopólios e carteis desvelaram imperfeições na mão invisível.
As falhas de mercado cobram uma atuação do Estado, desta vez uma mão visível, para seu saneamento. A publicidade e a transparência das compras públicas, as punições administrativas, a criação de sociedades de economia mista e de estoques reguladores, a regulação de atividades monopolistas, as medidas fiscais contracionistas ou expansionistas, o controle de liquidez, a oferta dirigida de crédito, entre outras, são ferramentas à disposição do poder público que ajudam a equilibrar o mercado.
Mesmo com a junção entrelaçada dessas duas mãos, uma invisível, do mercado, e outra visível, do Estado, a história mostrou que nem assim sempre se ajustam oferta e procura. As crises do capitalismo se repetem, vão e voltam, e cabe ao estado adotar medidas complementares, normalmente sob a forma de injeção de liquidez na economia.
Com a mão invisível do mercado mais a mão visível do estado, podemos dizer que a engrenagem da economia detém todas as peças para o seu funcionamento eficiente?
Temo que não.
Um ex-servidor do Capitólio, Mike Lofgren, em seu livro The Deep State: The Fall of the Constitution and the Rise of a Shadow Government, ou, O Estado Profundo, a Queda da Constituição e a Ascensão de um Governo Paralelo, em tradução livre, levantou suspeição sobre um jogador que atua nas profundezas, em paralelo ao estado constituído.
Esse jogador opera com mão invisível e a literatura chama sua equipe de deep state ou estado profundo. Segundo Logfren, estado profundo ‘é um tipo de governança composta por redes de poder potencialmente secretas e não autorizadas que operam independentemente da liderança política de um estado em busca de sua própria agenda e de seus objetivos’.
No centro econômico dos governos e em alguns setores periféricos, é variado o campo para a atuação de um jogador do estado profundo. As relações entre bancos centrais e tesouros públicos com o mercado financeiro, o carimbo de dotações orçamentárias, a troca de segredos industriais e comerciais, as pesquisas agrícolas e minerais, a antecipação de projetos de infraestrutura e o reordenamento urbano são terrenos férteis para sua atuação, em benefício de agentes privados que atuam nessas áreas.
Nem sempre, porém, são econômicas as razões do estado profundo. Ele opera com objetivos variados.
Há grupos no interior do Estado defendendo unicamente uma posição funcional estável, para a qual aceitam pequenas trocas com a autoridade política constituída, com os custos aumentando dependendo do tamanho do cargo em jogo. Numa estatal gigante e com contratos valiosos há oportunidades graúdas de troca e numa repartição de menor peso um quinhão condizente com o seu porte. Neste último caso, pode funcionar apenas um arremedo da microfísica do poder foucaultiano, sem trocas econômicas aparentes.
A CIA e a KGB são exemplos clássicos de funcionamento de estado profundo e com dois comandos (dual). Os interesses extraterritórios dessas agências estão calibrados para dar atenção à autoridade política sem perder suas agendas e seus objetivos. O Caso Irã-Contras, quando a CIA se utilizou do Irã para financiar contrarrevolucionários na Nicarágua é dos casos mais documentados. Até hoje se desconfia, mas não se sabe até que nível chegou na hierarquia política a informação sobre a operação.
As razões da KGB são as mesmas. A jornalista investigativa russa Yevgenia Albats sempre colocou os líderes da KGB em regime de competição com os membros do partido comunista, usando seus instrumentos de trabalho, como a espionagem, para manipulá-los. Segundo Yevgenia, os interesses da KGB superavam as decisões centralizadas dos líderes comunistas.
Edgar Hoover dirigiu o FBI por décadas. O FBI é outro caso clássico de dualidade de comando. Hoover dialogava com as autoridades políticas, mas os interesses estatais de inteligência eram definidos por ele e seus burocratas.
Tanto no caso da CIA e do FBI quanto no caso da KGB, capitalistas e comunistas atuando por dentro do estado constituído ‘chegam e vão’ sem que saibam exatamente quem decidiu o quê.
As provocações e os exemplos acima exsurgem em razão da vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2022. O sistema dual de repartição de interesses entre o estado profundo e o estado constitucional pode ocorrer neste novo mandato lulista, como ocorreu, aliás, no primeiro? Haverá vontade da burocracia para disputar poder com o titular de sessenta milhões de votos?
Sim, porque o estado profundo é competente, tem memória dos eventos administrativos, conhece engrenagens e sabe onde guardar ou como operar seus interesses na disputa com a autoridade política.
Eu diria que essas ameaças vêm de arenas específicas, no centro do poder estatal. Os órgãos setoriais e executores de políticas públicas são mais permeáveis ao discurso vencedor das eleições. Nos órgãos centrais, a normalidade será o choque, mas em ambiente furtivo, sub-reptício, subterrâneo.
Um caso conhecido foi o excesso de superávit primário alcançado em 2004, no primeiro governo Lula. A meta oficial era 4,25%, mas a equipe econômica esticou propositalmente o índice para 5%. Ao final do ano, quando o superávit chegou a 5% do PIB (em números baseados no PIB atual, 5% do PIB equivalem a escandalosos R$ 350 bilhões), a justificativa da equipe econômica para o índice alcançado mirou a incompetência dos executores das políticas públicas. Esse argumento foi desmoralizado, à época. Fazendo a média móvel mensal, 12 meses contra 12 meses, a taxa alcançada girou sempre em torno de 5%, ou seja, a equipe econômica liberava limites de pagamento para os Órgãos de forma que o superávit girasse na linha dos 5%, mensalmente. A linha dos gráficos não mentia.
Quem autorizou essa elevação do superávit foi o interesse instalado nas profundezas dos órgãos estatais.
Outro exemplo de atuação do estado profundo em sua disputa com o incumbente é mais recente e ficou conhecido como pedalada fiscal, no governo Dilma. Em rápido resumo, a acusação de pedalada se referiu, básica e principalmente, ao atraso na transferência de repasses aos bancos estatais, cujas despesas, da União, foram por eles honradas de acordo com o cronograma dos compromissos.
Com nuances, é uma operação praticada desde o governo Fernando Henrique Cardoso, mas o estado profundo ficou insatisfeito com os valores envolvidos e fez chegar ao TCU um alerta sobre o caso. Além do impedimento da presidenta, chamou atenção a seletividade do TCU na acusação sobre os servidores responsáveis pelo caso, na cadeia de comando do então Ministério do Planejamento.
É um bom exemplo. Levar ao órgão de controle, interno ou externo, e até à imprensa ‘denúncias’ contra o governo faz parte do ferramental do estado profundo para fazer valer suas opiniões no interior do governo, se a ação mais camuflada se mostra insuficiente. Nessas situações, quando se perde no debate político o objetivo ou a agenda, sem que a operação seja de fato um crime ou um dano contra a administração, cuida-se de embalá-la para que a opinião pública ou o controlador force o governo a recuar da medida.
A literatura nacional carece de documentação e reflexão sobre o tratamento que deve dispensar uma autoridade constituída aos objetivos e agendas preparados pelo estado profundo durante o exercício de seus dias de governo. Nas palavras de Tony Blair, ex primeiro-ministro inglês, em tradução livre, "você não pode subestimar o quanto eles acreditam que é seu trabalho realmente governar o país e resistir às mudanças apresentadas por pessoas que eles rejeitam como políticos. Aqui hoje, amanhã se vão".
O novo governo Lula será complexo e perigoso. A burocracia instalada na esplanada sofreu cinco grandes choques nos últimos vinte anos e o PT foi personagem de todos eles, apanhando no centro do ringue: o mensalão, o petrolão, o lavajatismo, o impedimento de Dilma e o bolsonarismo. As maiores feridas desses eventos sequer foram lambidas e é essencial que sejam estudadas vacinas quando se assumir o governo de fato.
* Afonso Oliveira de Almeida é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, foi Secretário Nacional de Planejamento e Investimentos Estratégicos.
**Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.
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