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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O controle horizontal e seus impactos sobre a democracia

14.dez.2022 - Sessão plenária do STF discute o futuro do chamado "orçamento secreto" -  Nelson Jr./SCO/STF
14.dez.2022 - Sessão plenária do STF discute o futuro do chamado "orçamento secreto" Imagem: Nelson Jr./SCO/STF

Colunista do UOL

20/12/2022 04h00

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Rodolfo Silva Marques*
André Silva de Oliveira**

"Democracia significa tão somente que o povo tem a oportunidade de aceitar ou rejeitar os homens que irão governá-lo". Esta foi uma das conclusões do economista Joseph Schumpeter no clássico livro Capitalismo, Socialismo e Democracia, publicado nos anos 1940. Na ocasião, Schumpeter enunciou uma nova teoria democrática assentada na ideia de que se tratava de mero procedimento - a promoção periódica de eleições livres e justas -, através do qual o eleitorado escolheria qual dos grupos ou partidos em disputa aberta iria governá-lo, por um prazo determinado.

Surgia, então, o conceito de democracia minimalista ou procedimental e, junto com ela, a percepção de que, passado o momento da convocação para votar, pouco ou nada restaria aos cidadãos na arena pública senão retornar à vida social cotidiana e esperar pelo próximo pleito. Não haveria muito o que fazer no período entre eleições.

Ousamos dizer que essa visão procedimental de Schumpeter da democracia é claramente reducionista e insuficiente porque, embora seja altamente relevante (e hoje os sistemas eleitorais se encontram sob intenso ataque e/ou questionamento em várias partes do planeta), o mero processo de selecionar os representantes políticos não esgota o conceito de democracia e nem, tampouco, o escopo de suas instituições. O fato é que, passadas as eleições, a democracia continua a operar por meio de suas instituições, sobretudo daquelas que realizam o chamado controle horizontal, como a Corte Suprema, os tribunais de contas, as polícias, o Ministério Público e até mesmo a imprensa livre. Afinal, um dos pressupostos básicos da chamada democracia liberal se apoia na ideia - hoje amplamente aceita no Ocidente - de prestação de contas dos atos dos governantes diante de tais instituições de controle que representam os governados. Prestar contas significa magnificar o princípio da transparência e, quando for o caso, processar e punir quem praticou gestão temerária ou, no limite, corrupção.

Nesse sentido, a experiência histórica tem demonstrado que, quanto mais eficientes forem os mecanismos de controle horizontal e autonomia de suas instituições, maior será a qualidade da democracia. Líderes políticos que aceitam os controles instituídos cooperam para o aprimoramento do sistema democrático, pois temem potenciais danos reputacionais à sua imagem caso sejam alvos de escândalos de corrupção. Há, todavia, líderes de perfil autocrático que se sentem pouco à vontade com os controles e procuram solapar suas instituições a todo custo. No propalado livro Como as democracias morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt afirmam, por exemplo, que líderes autocráticos veem o sistema de freios e contrapesos, típico da democracia liberal, como "uma camisa de força".

Não por acaso, regimes autocráticos intentam reduzir ou retirar completamente a autonomia das instituições de controle. Daí, resulta claramente o incremento da corrupção estatal com a consequente perda de qualidade para a democracia. Caso emblemático é o da Venezuela bolivariana que, tendo suprimido a autonomia das instituições de controle, tornou-se um dos países menos transparentes do planeta. Segundo o relatório Índice de Percepção da Corrupção de 2021, da organização Transparência Internacional, a Venezuela ocupa uma das últimas posições dentre 180 países pesquisados, ficando apenas à frente de Somália, Síria e Sudão do Sul. Desnecessário relembrar que ali houve uma significativa redução da institucionalidade democrática acompanhada do aumento exponencial da corrupção estatal. No topo do referido ranking, figuram países nórdicos de clara tradição democrática e respeito ao princípio da transparência como Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia e Noruega - embora também com seus problemas. A lição é clara: a autonomia das instituições de controle e a garantia de espaços para a contestação pública são necessárias para a preservação da democracia.

No caso brasileiro, as instituições de controle horizontal - o controle vertical é feito por meio de eleições premiando os bons e punindo os maus governantes - tiveram notável reforço dos seus poderes com a Constituição de 1988, especialmente com o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público. O fortalecimento dos poderes das instituições de controle em face do Poder Executivo, historicamente hiperbólico entre nós (pelo "poder da caneta", capaz de nomear e exonerar com desenvoltura), foi de tal ordem que, no artigo Malaise Política no Brasil: Causas Reais e Imaginárias, o cientista político Marcus André Melo classificou o novo desenho institucional de "Coleira curta para cachorro grande".

Recentemente, o Judiciário, notadamente o STF, assumiu um protagonismo nunca antes visto na história republicana. Na esteira dos escândalos do "Mensalão" e do "Petrolão", o Supremo validou inicialmente os julgamentos da Operação Lava Jato e parte da classe política predatória, juntamente com alguns empresários associados, foram severamente atingidos. Depois, argumentos invocando a prática de lawfare pela Lava Jato, em especial nas ações de procuradores e do então juiz Sérgio Moro, e a ascensão do governo Bolsonaro, que enfraqueceu drasticamente, os mecanismos de investigação, fizeram com que o STF recuasse no apoio emprestado à "República de Curitiba", e redirecionasse seu protagonismo na defesa das instituições de controle.

É possível que o STF tenha se excedido em algumas decisões de conteúdo político, afinal, a linha que separa o respeito às regras e o seu eventual abuso é muito tênue. Ainda assim, a ideia frequentemente invocada de que o STF e demais instituições de controle, não tendo seus membros eleitos diretamente pela população, devem se submeter à vontade de maiorias eventuais fere de morte a democracia e favorece a ação da classe política predatória - o patrimonialismo, presente em nossa trajetória histórico-institucional desde a época colonial, remanesce e parece ter recebido recentemente novos incentivos através do Orçamento Secreto.

As instituições de controle, em especial o STF, apresentam uma natureza contramajoritária, fundada na tradição madsoniana, daí porque necessitam ter sua autonomia preservada. Como lembrou Fareed Zakaria no icônico artigo The Rise of Illiberal Democracy, o Ocidente democrático se caracteriza pelo juiz singular e não pela democracia plebiscitária. Enfim, é preferível ter um Judiciário falho, mas independente, do que tê-lo submetido a um Executivo agigantado, caso em que resultaria no triunfo de algum tipo de autocracia, nunca da democracia.


* Rodolfo Silva Marques é professor de cursos de graduação e de pós-graduação da Universidade da Amazônia (UNAMA) e de cursos de graduação da Faculdade de Estudos Avançados do Pará (FEAPA). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). e-mail: rodolfo.smarques@gmail.com

**André Silva de Oliveira é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e advogado com especialização em Direito do Estado pela Faculdade do Pará (FAP). E-mail: portocalle62@gmail.com

***Esse texto é fruto de uma parceria entre a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Coluna Diálogos Públicos.