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Federalismo brasileiro e a vida real nos municípios

São José dos Campos  é a melhor cidade do interior do país para empreender - Divulgação
São José dos Campos é a melhor cidade do interior do país para empreender Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

14/10/2022 17h19

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Celina Pereira*
Denilson Bandeira Coêlho**

Embora o momento seja de escolha de representantes nas esferas estadual e federal, nunca foi tão importante olhar para os municípios. Vistos com frequência como pedra no sapato da federação, a pandemia escancarou que os problemas e as soluções cotidianos se encontram na gestão das cidades. De leitos hospitalares a covas nos cemitérios, a vida real é gerenciada nas prefeituras.

A Constituição Federal, em seu artigo 40, estabelece ampla lista de competências municipais, como oferta de transporte público, educação infantil e fundamental, serviços de saúde, além de planejamento urbano, instituição e arrecadação de tributos e proteção do patrimônio histórico-cultural. Além disso, compete aos entes municipais legislar sobre assuntos locais e suplementar as legislações federal e estadual.

O reconhecimento dos deveres desses entes da federação vai além de mera abstração teórica ou previsão legal abstrata. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a obrigação do poder público local de oferecer vagas em creches para todas as crianças de 0 a 3 anos. Por unanimidade, a partir de decisão anterior contestada pela prefeitura de Criciúma (SC), a Corte reiterou o caráter de direito fundamental desse acesso, independentemente de capacidade ou previsão orçamentária. A decisão tem repercussão geral e deverá ser atendida por todos os municípios.

Um elemento fundamental no desenho institucional brasileiro e que regulamenta as relações governamentais é o federalismo. Somos o único entre os 25 países federalistas do mundo com três entes distintos - jurídica, administrativa e politicamente autônomos. Esse modelo permite que prefeitos e vereadores simplesmente vetem iniciativas das outras esferas.

É verdade que cada arranjo federativo tem sua conformação própria. Nos EUA, por exemplo, a forte autonomia dos Estados lhes confere ampla capacidade de inovação e de endividamento para o financiamento das políticas públicas. As legislações aprovadas no sistema estadual bicameral são determinantes para as 19.500 cidades. Entretanto, comparativamente, não resta dúvida que os governos municipais no Brasil são amplamente dependentes das esferas estadual e sobretudo federal, ao contrário do caso americano.

Temos a quinta maior carta constitucional do mundo, com cerca de 64 mil palavras, sendo 40% do conteúdo relativo à temática de políticas públicas. Aqui podemos dizer com segurança que a União é a cabeça do sistema de policies, ou seja, quem desenha e irriga a safra de bens e serviços públicos. O governo federal tem em suas mãos a maior parte do bolo tributário, e também a mais forte capacidade estatal para a gestão dos recursos. Do outro lado, embora figurem como a "parte mais fraca", os municípios são responsáveis pela distribuição de saúde e educação à população, transportando, assim, a teoria da política pública para o mundo real.

Essa dinâmica redunda na máxima de que o sucesso das políticas federais depende dos municípios. Por isso, não devem ser tratados como meros despachantes da União e dos Estados junto à população. Ao contrário, precisam compor a mesa dos adultos bem antes da execução, idealmente nos estágios pré-decisórios e no momento da formulação.

Não raro as políticas que "dão errado" são recheadas por problemas de desenho que poderiam ser antevistos ou ajustados lá atrás. Parte das falhas do modelo federalista em políticas públicas ocorre em razão das diferenças de capacidade institucional da burocracia central e dos governos subnacionais. A visão predominante na literatura especializada é que as burocracias dos governos centrais são weberianas, de tipo administrativa e meritocrática, enquanto as municipais seriam majoritariamente de tipo clientelista.

Apesar da validade histórica dessa abordagem, deve-se reconhecer que, do ponto de vista empírico, os municípios inovam e essas inovações se espalham com frequência pelo sistema. Vale dizer, parcela significativa de governos locais escapa à debilidade institucional e, ao contrário, desenvolve ideias criativas com potencial para gerar o efeito de transbordamento, o que resulta na reconfiguração do portfólio nacional e na federalização das políticas sociais. São exemplos clássicos do processo de difusão, com posterior verticalização federal ou estadual, as experiências locais dos programas de transferência de renda, o programa saúde da família e o orçamento participativo.

Embora criativos, os municípios possuem necessidades de toda ordem, e é fundamental analisar o contexto histórico recente. Cerca de 50% foram emancipados entre 1988 e 1996, sendo que 70% das 5.570 cidades possuem menos de 20 mil habitantes. Mesmo nascendo com o enxoval conhecido como Fundo de Participação dos Municípios (FPM), estes já iniciam a atuação no sistema político fragilizados institucionalmente. Faltam burocracia qualificada, bons instrumentos de execução, monitoramento e feedback rápido, engajamento e participação da sociedade civil. Justamente por isso, todos esses fatores precisam ser levados em conta no momento de se planejar qualquer intervenção, para que o desenho seja coerente ou flexível diante das realidades locais.

Isso significa lembrar que os municípios têm vida própria e precisam ser ouvidos e auxiliados para o sucesso das políticas públicas pensadas pelo governo central. Dada a assimetria de capacidades, os decisores e gestores federais têm que ofertar as condições em termos de treinamento, orientações, descomplicação e racionalização de processos burocráticos, simplificação de instrumentos e execução e controle permanentes.

Olhar para os governos locais significa reconhecer que existe um trade-off entre escala e escopo - ou seja, políticas com desenhos muito sofisticados, intensa atividade burocrática, grandes contrapartidas e excessivo controle costumam ter menor adesão.

A recente supremacia do controle sobre a gestão pública gerou uma lógica absolutamente disfuncional sob o ponto de vista das entregas: os gestores sérios atuam na frequência do medo de comprometer seus CPFs, e o objetivo passou a ser não mais a efetivação da política pública, mas se eximir/se desresponsabilizar. Nesse jogo de empurra entre União e entes, todo mundo perde: a política pública e o cidadão.

Para o sucesso dos programas e ações, a gestão federal deve ser mais aderente à sua lógica real de funcionamento. Isso passa por i) reconhecer os municípios como interlocutores privilegiados sobre suas demandas e que devem ser ouvidos no momento do desenho; ii) facilitar e desburocratizar os processos de execução de políticas, sobretudo as "tubulações" de envio de recursos; e iii) oferecer canal de diálogo forte e efetivo com os municípios no âmbito federal, o que passa por ativar e estruturar as unidades federais de articulação federativa no centro de governo, com escuta atenta e mecanismos rápidos de solução de problemas. Afinal, em respeito à previsão Constitucional acerca de um federalismo cooperativo, cabe à União chamar a responsabilidade pela coordenação e liderança de processos.

Se a administração pública brasileira precisa de alguma reforma, certamente é aquela que tem como objetivo a melhoria das entregas de serviços públicos. E, esta, para ser efetiva, não pode ser pensada sem a consideração dos municípios na equação. Afinal, são esses entes que representam, de fato, o Estado diariamente na vida da população.

*Celina Pereira é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Doutoranda e Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília.

**Denilson Bandeira Coêlho é Professor e Coordenador da Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília e Pós-Doutor pelo Departamento de Governo na Universidade do Texas em Austin.

***Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.