Carta do passado para Miguel, que vive no futuro
Resumo da notícia
- Nos três meses da morte de Miguel, colunista do UOL participa de encontro com seus amigos e amigas, sua mãe e sua avó
- Menino perdeu a vida ao cair do nono andar de um prédio no Recife, quando estava aos cuidados da patroa da mãe, que passeava com cão da família
- Sarí Mariana Gaspar Corte Real virou ré na Justiça por abandono de incapaz com resultado de morte, e ainda não apresentou sua defesa
Miguel,
Completaram-se três meses da tua partida. Preciso te dizer o quanto tem sido estranho, desde então, ler tanta coisa triste, tanta coisa violenta, o teu nome sempre ali no meio, e ao mesmo tempo olhar as tuas fotos. Nelas, você sempre está sorrindo, brincando, se divertindo. Na praia, na piscina de bolinha, no parque. Parece que são dois mundos: em um, a gente vê a tua vida, tua cara feliz e teu sorriso banguela. No outro, infelizmente, a gente vê a tua mãe e tua avó nos jornais chorando tua morte.
Eu, como tanta gente, queria muito falar mais de você, e de meninos e meninas como você, pelo fio condutor da felicidade. Falar sobre sua formatura no ABC, do tablet que quebrou e voltou do conserto, da comida boa que sua mãe faz, do amigo novo que chegou lá no hotelzinho. Queria falar do cotidiano do garoto inquieto das fotos, aquele que a maioria das pessoas, que só te conheceu há três meses, no dia de tua partida, nunca viu e nunca vai poder ver.
Escrevo há mais de 20 anos e devo confessar no quanto é triste e cansativo, mais uma vez, ter que narrar sobre gente da sua e da minha cor, da cor de sua mãe Mirtes e da sua avó Marta, usando palavras que nem de longe lembram a vida boa. Aquela que, apesar de todos os perrengues, você tinha. Aquela que tua mãe e tua avó, cuidando de casas, de crianças e de vidas alheias, se desdobravam para te dar: teus brinquedos, teus tênis bolados, teus lanches, tua cama e teu teto. Essa era a tua vida. E ela, sim, era boa.
Decidi então visitar tuas amigas e teus amigos.
Luan, Kayke, Adrielle, Emmanuel, Miguel (seu xará), Carol, Julinho, Maria.
Fiquei sabendo de umas brincadeiras geniais que vocês inventaram. Não vou dizer "inventavam" porque sua turma continua lá e você está ali, presente (você vai ver). Das brincadeiras, adorei especialmente uma, a Caçadores de Lendas. Achei genial: vocês misturam filme e videogame e trazem umas coisas costuradas das telas para a vida real.
Caçadores de Lendas
Foi Luan (te ensinou a andar de bicicleta, ele falou), Kayke e Adrielle que me explicaram tudo: vocês pegam as bikes, umas arminhas de brinquedo, lanternas se estiver escuro, e saem explorando as ruas enquanto alguém fica na "central de controle" monitorando os perigos, as lendas, as recompensas. Inventam fantasmas, perigos, gritos, sustos. Fingem que estão buscando alguma coisa que nem precisa ter um nome exato, pois o emocionante mesmo é procurar (e eu cá fico pensando que vocês já sabem muito sobre algumas coisas da vida, no final das contas).
Soube também — isso foi Kayke quem falou - que vocês dois costumavam subir em travesseiros e os transformavam em motocicletas super velozes, batiam uns nos outros e reviravam na cama, no chão, nas estradas imaginárias que estivessem à disposição. Eu sei que você adorava motos e, quando passava na frente de uma loja, dizia a sua mãe que um dia ia comprar uma para passear com ela.
Estávamos lá no sofá da casa de Kayke e de Luan quando seu amigo, "o outro Miguel", chegou. Aí contaram que vocês se diferenciavam porque ele é o Um e você é o Dois, ou ele é leite e você chocolate, ou ele é Miguel e você Miguelzinho (pra você, ele sempre foi Galego, Mirtes comentou). Emmanuel, do tamanho dos seus quatro anos de idade, chegou depois. O sofá lotou, e eu percebi que tua turma grandona, além de inventar maravilhosas histórias, também é formada por bailarinos e bailarinas e que você era um dos professores. O Mestre e Rei do passinho.
O caixa portátil de Luan e o celular de Adrielle fazem a festa no teu bairro, que tem 14 igrejas evangélicas e ruas com nome de poetas e pintores. Aí vocês juntam Cecília Meireles e Pablo Picasso ao brega funk de Shevchenko e El Loco, ao reggaton de El Chombo, ao quebra-quebra de MC Elvis. Confesso que achei bem engraçado quando tua mãe contou que uma vez você dançou tanto tempo e quebrou tanto o quadril pra frente e pra trás que ficou com dores na virilha.
Requebrando no hotelzinho
Também rimos quando lembraram que foi você quem ensinou as crianças do hotelzinho onde às vezes passava o dia, quando tua mãe e tua avó iam para o centro de Recife, a dançar o passinho. Que o pessoal da Assembleia de Deus, onde você ia aos sábados, te pegava virado requebrando o "cha-pu-le-tei" e aí às vezes uns diziam: "mas Miguel!". Você ficava até quieto, ia lá para a televisão, mas depois retomava.
Julinho e Maria, que dançaram lá contigo, me contaram que gostavam muito de aprender com você. De ficar com você. Julinho também falou do teu carinho e do teu cuidado toda vez que chegava um bebê novo por lá.
O hotelzinho fechou depois que você foi embora, Miguel.
E as mães que, como a tua, precisavam deixar os filhos lá para cuidar da vida alheia, não sabem muito bem o que agora vão fazer.
Muita, muita, muita saudade
Já acabo de escrever. Antes quero contar que também fui com Mirtes na casa de tua amiga Carol. Ela estava linda usando um diadema colorido e uma bolsinha brilhante. Carol gosta muito de você, Miguel. Repetiu cinco vezes, em um tempo curtinho, que sente a tua falta. "Muita, muita, muita."
Eu soube que vocês eram bem próximos e que você só não estava no primeiro aniversário dela: foi aos outros quatro, e que o mais legal, ela falou, foi aquele que teve piquenique no Parque da Jaqueira. Disse que vocês iam juntos para a praia, a pizzaria, o shopping, o parquinho, os passeios no centro da cidade.
"Eu tô com muita saudade de Miguel. Muita."
Uma hora eu falei para Carol que ela podia te contar sobre o que ela tem feito, as brincadeiras, a escola. Fiquei um pouco triste quando ela repetiu um "muita, muita, muita" e quis diminuir um pouco a saudade dela. Só então eu entendi que vocês continuam, de uma forma particular, se encontrando.
"A gente não precisa contar nada pra ele. Ele vê. Eu brinco até de esconde-esconde com Miguel, ele se esconde lááááá no céu. Quando eu tô sozinha, eu brinco com ele. Ele se esconde lá no céu e aí eu finjo que achei ele. Aí eu vou lá e bato." Então, Miguel, você e Carol andam brincando e a gente — eu, Mirtes e Rayssa, a mãe dela — ficamos emocionadas sabendo disso por ela.
Presente no sonho dos amigos
Você continua por aqui, nesse bairro cheio de igrejas, mercados, bares, escolinhas, barraquinhas que vendem confeito, pipoca e picolé. Você continua brincando com Carol e também visita, ainda que rapidamente, os sonhos dos Caçadores de Lendas: Adrielle contou que em um estava brincando no prédio da avó, no primeiro andar, e caía sobre uma moita. Ela ficava bem. "Depois, a gente tava brincando aqui na rua. Foi só um instante: eu vi Miguel na minha frente e acordei."
Kayke também sonhou com você: estavam fazendo uma negociação entre as bicicletas que vocês tanto gostam. "Ele é legal. Se ele quiser trocar, eu fico com a dele e ele fica com minha."
Teus amigos e tuas amigas cercam tua mãe e tua avó; as mães da rua, do hotelzinho, também. Isso foi a coisa mais bonita de ver. Às vezes se juntam, somam ali e aqui algum dinheiro, fazem uma cotinha, compram comida e fazem uns panelões: já teve canja, já teve sopa e teve cuscuz recheado (o campeão de audiência, embora a sopa também tenha feito sucesso).
Parece que tua mãe já agendou um munguzá, mas pelo que entendi, foi uma decisão meio polêmica entre teus amigos: uns querem, outros não. A unanimidade é que tua mãe cozinha muito bem. Luciana, mãe de teus amigos Luan e Kayke, aquela que já te olhou muito brincar, me falou baixinho que lá na rua estão procurando cuidar delas.
O menino é o futuro
Quando eu entendi aquela rede de proteção ao redor de tua família, Miguel, acho que acabei descobrindo eu mesma a minha lenda, meu tesouro. Sem saber que eu procurava, que estava caçando. Um pouco como na brincadeira de vocês. Eu fui falar com teus amigos, queria conhecer o Miguel sorrindo banguelo nas fotos e vi uma pequena afetiva tropa de mulheres e crianças em absoluto amor entre si.
Quando eu vi o tamanho da tua turma e me falaram que vocês todos tem uma bicicleta e se juntam para fazer farra, aquela rua comprida, as ladeiras que podem ser perigosas, perguntei logo: "mas com tanta criança junta, quem é que dá conta de tudo?"
A tua mãe, encostada na porta, me falou: "a gente olha os filhos dos outros, a gente cuida direitinho. Quando vem um carro, vem uma moto, a gente grita, avisa. É assim aqui, um olha o filho do outro. A gente cuida direitinho".
(...)
Há alguns dias, vi uma aula de uma historiadora chamada Ynaê Lopes dos Santos. No final, ela mostrou o quadro O Menino, do pintor Artur Timóteo da Costa. Ynaê falou algo muito bonito e que me trouxe você: aquele menino negro, negro como o próprio pintor, é o futuro. E no futuro, haverá países inteiros de você, vivo, Miguel. Um beijo.
Agradeço a Marta, Mirtes, Rayssa, Luciana, Sueli, Juliana.
Veja aqui livros sobre como falar sobre morte com crianças.
Leia aqui um texto meu sobre o dia em que Miguel, Mirtes, Sari e Gilberto Freyre se encontraram em um elevador
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