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Fabiana Moraes

Quando abortamos: as histórias de 12 mulheres

8.mar.2020 - Manifestantes participam de ato a favor do aborto legal e gratuito em frente à Catedral de Buenos Aires, na Argentina. Os lenços da cor verde simbolizam a luta pelo direito de interromper a gravidez - Mariana Greif/Reuters
8.mar.2020 - Manifestantes participam de ato a favor do aborto legal e gratuito em frente à Catedral de Buenos Aires, na Argentina. Os lenços da cor verde simbolizam a luta pelo direito de interromper a gravidez Imagem: Mariana Greif/Reuters

Colunista do UOL

21/08/2020 13h21

Resumo da notícia

  • Relatos de mulheres que já realizaram o aborto ilegal mostram a existência cotidiana da prática no Brasil
  • Pesquisas revelam que mulheres negras morrem 2,5 mais vezes nos procedimentos induzidos
  • Dificuldade econômica e relações instáveis, no amor e na família, são apresentadas como justificativa

Fernanda Pedroso, vendedora, 43 anos. Mora em São Paulo. Fez um aborto aos 31. Na época, trabalhava como autônoma e todos os recursos já eram voltados para ela e os quatro filhos. A possibilidade de ter mais um e ficar sem condições financeiras para cuidar da família desesperou a vendedora. A única "ajuda" do rapaz com o qual ela estava se relacionando na época foi o contato para a compra do medicamento Cytotec, bastante comum como método de interrupção da gravidez no Brasil. "Eu atrasei o aluguel aquele mês para poder comprar os remédios. Sofri alguns anos de depressão porque não acreditava que minha cabeça cristã havia permitido essa decisão. Mas consegui tratar meus fantasmas".

* A indução do aborto é uma prática comum no Brasil. De acordo com o artigo "Determinantes do aborto provocado entre mulheres admitidas em hospitais em localidade da região Nordeste do Brasil", estimativas apontam que entre 300 mil e 3,3 milhões de abortos ilegais são feitos a cada ano no país.

Maria Zélia Terra, escritora, 32. Mora em São Paulo. Fez dois abortos, um aos 18 anos e outro aos 27. O primeiro aconteceu na Espanha, país no qual a prática foi legalizada em 1985 e ampliada em 2010. Maria estudava no país. Lá, precisou pedir cerca de R$ 4.000 a uma amiga para fazer o procedimento — não contou aos pais. "Nunca conversamos sobre sexo. Aprendi empiricamente, geralmente errando. Aceitar que estava grávida foi o mais difícil. Na Espanha era legal, mas havia a questão moral." Aos 27, estava em uma relação conturbada e engravidou novamente. O namorado soube, mas não ofereceu qualquer apoio emocional ou financeiro. "Nem uma ligação." Precisou da ajuda de amigas para levantar o dinheiro, cerca de R$ 4.500. "Aqui marcou mais, por ser clandestino, por estar envolto nessa questão de criminalidade. Não tenho arrependimento."

* No Brasil, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres com baixa escolaridade, mulheres com menos de 14 anos de idade e mais de 40 e que vivem nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sem companheiros, são as maiores vítimas de morte causadas em decorrência do aborto.

Adriana Soares, 37, operadora de telemarketing. Mora em João Pessoa. Fez um aborto em casa há dez anos, tomando Cytotec. Tinha dois filhos quando engravidou, de maneira indesejada, pela terceira vez. O marido estava desempregado e ela recebia 1,5 salário mínimo ao mês. O abortamento caseiro trouxe complicações e ela precisou ser levada às pressas para o hospital, onde ouviu sermões e piadas da equipe de saúde. "Quando eu chorava de dor, diziam algo como: 'você não chorou para fazer o aborto, não é?' Foi horrível".

* A pesquisa Itinerários e métodos do aborto ilegal em cinco capitais brasileiras também mostra que, no Brasil, há uma prevalência do aborto entre mulheres negras. O principal método abortivo é uma combinação de chás e Cytotec (misoprostol) com a finalização em hospitais. Segundo o pesquisador Mário Monteiro, o risco de óbito entre mulheres negras é 2,5 maior do que entre mulheres brancas.

Maria Tereza Matos, 36, controller financeiro. Vive no Rio de janeiro. Fez um aborto aos 17 anos. Lembra que pediu R$ 650 emprestados ao pai — a mãe não aceitou a gravidez e disse que sairia de casa se a filha levasse a gestão à frente. O namorado de Maria era favorável à gravidez. "É um mal que a gente carrega, a gente sofre. Não é simples, 'engravidei e vou tirar', é uma luta interna. Fiz acompanhamento psicológico. Nunca falei com minha mãe sobre sexualidade. Aprendi na rua". Nove anos depois, ela engravidou novamente, da mesma pessoa. "Ele jogou na minha cara durante muito tempo que eu não fui mulher para assumir uma gravidez aos 17 anos."

* Aproximadamente 55 milhões de abortos ocorreram entre 2010 e 2014 no mundo, sendo 45% considerados abortos inseguros. Destes, 97% concentrados na África, Ásia e América Latina (fonte: Organização Mundial da Saúde). O aborto inseguro é a quarta causa de morte materna no Brasil.

Fernanda Silva, 45, jornalista. Vive no Recife. Sofreu abuso sexual duas vezes, uma aos cinco anos, do padrasto, outra aos onze, de um primo. Fez dois abortos, um aos 17 anos, outro aos 30. No primeiro, estava prestando vestibular quando engravidou de um ex-namorado. A educação sexual também foi aprendida na rua, não na escola ou em casa.

"Nessa época morava em uma casa recém-construída, na periferia, minha mãe não teve dinheiro para finalizar e durante muito tempo vivemos sem janelas e com somente metade do teto." A mãe, desempregada, ajudou a comprar o Cytotec. "Senti muita dor e fiquei o tempo todo sozinha no banheiro quando comecei a sangrar".

Na segunda vez, Fernanda vivia um relacionamento inconstante quando engravidou novamente. Já trabalhava e podia realizar o procedimento em uma clínica. "Eu tinha mais estabilidade financeira e morava com meu filho. Passava o dia fora de casa para segurar as contas." Pagou pela intervenção e até hoje lembra do rádio da sala do médico, que aumentava o som para abafar o possível grito das pacientes na hora do procedimento.

* O aborto não especificado é a causa básica mais frequente (56,5% dos casos) entre os óbitos por aborto segundo a pesquisa "Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?". Entre os 770 óbitos com causa básica declarada como aborto, apenas 0,9% (7 casos) dos óbitos foram devidos a aborto por razões médicas e legais. Já 14,9% (115 casos) foram declarados como abortos espontâneos, 15,2% (117) como outros tipos de aborto e 12,5% (96) como falha de tentativa de aborto.

Patricia Santos, feirante, 48. Mora no Recife. Patrícia tinha um filho adolescente quando engravidou de novo, aos 37 anos, sem planejar. Abusada pelo namorado da mãe quando era criança, ela não realizou o procedimento em uma clínica, apesar de ter condições financeiras naquele momento. Optou pelo Cytotec. Teve complicações e precisou ser levada ao hospital, uma memória que até hoje a faz sofrer. O caso provocou, durante um tempo, um afastamento entre ela e o marido, com quem está há 20 anos. "Ele queria que eu tivesse o filho. Mas naquele período, eu sabia que ele me traía e eu já me preparava para me separar. Depois retomamos a relação".

* Os métodos abortivos entre as brasileiras mudaram nas últimas décadas, de acordo com a pesquisa "Cytotec e aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres". Segundo o estudo, sondas, substâncias cáusticas ou objetos perfurantes eram métodos muito utilizados até os anos 1980. O resultado era uma taxa de mortalidade ainda maior.

Claudia Soares, 37, diretora executiva. São Paulo. Fez um aborto aos 17 anos. "Não queria naquele momento ter um filho. Estava prestando vestibular, tinha planos concretos para meus próximos anos. Minha mãe me ajudou a encontrar uma clínica, e ela, meu pai e meu namorado na época, ficaram comigo o tempo todo. Meu pai, por ser médico, entrou comigo na sala. Fui anestesiada e dormi. Sangrei por alguns dias. Não houve dor, não houve grande drama. Nem no dia, nem nos anos que vivi até aqui. Na época, soube que uma das mulheres que mais amo e admiro, e que vive em outras condições sociais, quase morreu tomando o famoso Cytotec. Pagamos R$ 4.000, algo impensável para a realidade da maioria das brasileiras."

A pesquisa "Cytotec e aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres" também mostra características dos intermediários do medicamento. "Eles são personagens de grande pressão psicológica sobre as mulheres, desestimulando-as a procurar os serviços de saúde em situação de emergência".

Jamila Nascimento, 36, produtora. Mora em São Lourenço da Mata. Fez um aborto em janeiro deste ano. "O que eu consigo dizer agora é que o procedimento nos coloca num lugar de muita solidão, sentimos vergonha de falar porque seremos julgadas". Jamila sente o peso da religião na área onde mora. "Muitas famílias na favela são evangélicas. Não pude dividir com minha irmã, por exemplo, que é da Assembleia de Deus, mesmo ela sendo minha grande amiga".

Usou Cytotec no procedimento. Como não tem plano de saúde, se deslocou de casa para um bairro que considerava mais seguro, perto de um hospital público. Seu companheiro estava ao seu lado. "Dar errado é algo que nos martiriza durante o procedimento. Só quem sente é a gente."

* Mais de 180 estupros foram contabilizados por dia no Brasil em 2018, metade deles vitimizando meninas de até 13 anos de idade.

Ana Almendra, 68, pesquisadora. Mora no Rio de Janeiro. Fez quatro abortos. No primeiro, tinha 20 anos. Depois, fez outros aos 22, 29 e 33 anos. A primeira vez foi no contexto de um casamento ruim, o segundo aconteceu em uma relação muito recente. Na terceira vez, já tinha um filho, estudava e trabalhava, quando engravidou de novo. Enfrentava problemas financeiros em todas elas.

"Eu ainda estava em um momento de instabilidade econômica quando engravidei pela quarta vez. Não queria assumir, naquele momento, a responsabilidade. Paguei clínicas caras, com muito esforço, na falta de assistência pública. Tive uma hemorragia grave em um dos abortos e fui a hospital para resolver. Colocou minha vida em risco."

Hoje, Ana tem dois filhos. "Sou feliz com eles. Os abortos foram experiências dolorosas, difíceis, mas acertadas. Você tem que dispor de sua vida e do seu corpo da maneira mais adequada ao momento que você está. A sociedade não atende, não tem creche pública, há pouco apoio. A mulher às vezes não pode fazer aborto porque não tem dinheiro para pagar e é obrigada a ter muitos filhos sem condições econômicas. A experiencia clandestina é muito dura para mulher."

* Os casos de violência doméstica, incluindo sexual aumentaram em todo mundo no contexto da Covid-19. Entre 2014 e 2016, na epidemia do vírus Ebola, o Unicef apresentou relatório que evidenciava o aumento de violência doméstica contra meninos e, mais ainda, contra meninas.

Rita Moreira, 41, antropóloga. Recife. Tinha entre 32 e 33 anos quando engravidou. Já era mãe de dois filhos e fazia uso de camisinha e tabelinha. "Estava morando em outra cidade e de mudança para Recife, tinha pedido transferência. Aquilo me perturbou muito, estava sozinha. Vim para o Recife e procurei como fazer. Uma amiga obstetra me deu Cytotec. Eu tinha muito medo de morrer, ter hemorragia e deixar meus filhos sem mãe. No dia, segui o protocolo e uma amiga ficou comigo. Comecei a sangrar à noite. Meu marido ficou dormindo."

* Existem organizações de religiosas voltadas para defender a autonomia das mulheres, como a Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD) e a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto.

Bruna Mendes, 29, editora de livros. Vive em São Paulo. Fez um aborto há dez anos, em um consultório médico. "Eu estava com pouco mais de 10 semanas. Descobri um pouco tarde, porque eu continuei menstruando. Eu não namorava e tinha pouco contato com o genitor. Nos falamos, contei a ele, falei da minha decisão e, juntos, fomos pedir ajuda a conhecidos.

Um deles indicou um médico que atendia na Zona Norte e cobrava, à época, R$ 2.000, dinheiro que, enquanto estagiários, não tínhamos. Fomos para a primeira consulta, um lugar cheio de fotografias de crianças e de personagens cristãos. Parecia dizer: 'Você está errada por querer abortar'. O procedimento em si foi muito 'tranquilo', mas todo o contexto de ilegalidade, de culpa, a impossibilidade de falar abertamente do assunto, de viver essa experiência no sigilo, foi devastador.

Não me arrependo de forma alguma da decisão, acho que não havia nenhuma estrutura emocional e financeira. Mas é uma dor, é um luto que carrego, e não pela escolha, mas pela criminalização do ato, pelos julgamentos moralizantes, pela falta de espaço de diálogo. Nos dias que se passaram me senti muito triste, deprimida e não fui para o estágio. Acabei sendo demitida logo depois."

* Há também grupos de apoio em todo mundo. A pesquisadora Gabriela Lauterbach estudou redes de acompanhamento às mulheres que abortam de forma autônoma com medicamentos. No Recife, a ONG Gestos realiza campanha sobre preconceito contra o abortamento legal. Há ainda uma rede de apoio para levar mulheres até a Colômbia para a realização de abortamento seguro (para casos fora da legalidade, no Brasil).

Cecília Andrade, 44, turismóloga. Mora em Olinda. Fez dois abortos. Engravidou aos 17 anos, pouco depois de ter iniciado a vida sexual. "Tinha pouquíssima experiência. Em uma transa, a camisinha estourou e meu parceiro não contou. Somente quando falei da gravidez ele revelou. Procuramos médico, meu namorado já conhecia ele. Pediu ultrassom. Era um lugar frio, escuro, horrível. Me desestabilizei".

Cecília não voltou ao consultório. Procurou uma ONG voltada para mulheres. Soube do Cytotec e usou. " Aos 19, engravidou e optou em ter o filho. Engravidou novamente sete anos depois. Tinha acabado de colocar o DIU. "Fiquei grávida, mesmo com ele. Meu ginecologista, um senhor velhinho, me orientou no aborto. Foi com Cytotec também, ele foi acompanhando por telefone".

A coluna recebeu outros dez relatos que, por mera questão de espaço, não entraram aqui. Agradeço a todas as mulheres que dividiram suas coletivas histórias. Alguns dos nomes foram alterados.

A indução do aborto é uma prática comum no Brasil.