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Fabiana Moraes

Os absurdos que já presenciei no interior de uma universidade federal

30.mai.2019 - Manifestantes, entre eles estudantes da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e indígenas, protestam contra o contingenciamento de 30% do orçamento - Priscilla Torres/PhotoPress/Estadão Conteúdo
30.mai.2019 - Manifestantes, entre eles estudantes da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e indígenas, protestam contra o contingenciamento de 30% do orçamento Imagem: Priscilla Torres/PhotoPress/Estadão Conteúdo

26/09/2020 04h01

A universidade pública é aquele lugar que você, mesmo se nunca botou os pés, já deve conhecer: muita gente desocupada, usuários de drogas, pesquisas sem pé nem cabeça.

Como bem sintetizou o saudoso ex-ministro da educação Abraham Weintraub, um espaço de balbúrdia. Eu, que há quase cinco anos sou professora de uma — no Centro Acadêmico do Agreste na Universidade Federal de Pernambuco (CAA/UFPE), Caruaru — posso dar aqui meu testemunho das verdadeiras inversões que já vi lá dentro. São histórias espantosas, e peço desde já desculpas pela exposição de tanta sacanagem.

Vou começar falando de um estudante e pesquisador, Danillo, que há poucos dias terminou o mestrado na área de Educação.

O rapaz é filho de um ex-sapateiro e ex-PM, a mãe tem o ensino médio. Danillo, como boa parte das pessoas que estudam naquele centro, precisou trabalhar durante a infância. Guardou carro, vendeu doces, ficou com a mãe em barraquinha comercializando bebida e lanche durante festa de São João.

Se fosse mais comportado, seu desempenho acadêmico deveria ser baixíssimo (a Organização Internacional do Trabalho divulgou que pessoas que começam a trabalhar antes dos 15 anos tendem a pouco sucesso acadêmico e empregos de remuneração baixa). Mas ele, afoito, inventou que queria entrar na universidade.

Trabalhou de dia e estudou à noite. Deu de cara com a outra afoiteza que são aqueles prédios oferecendo ensino superior gratuito no meio da caatinga — se tivesse que ir para o Recife, não conseguiria se bancar. Agora está por aí, fora da curva, ostentando título de mestre.

Coisa do capeta

Nos corredores do CAA, Danillo passou diversas vezes por Asa, agora no oitavo período do curso de Comunicação Social. Um dos seis filhos do casal de agricultores Valentim e Alda, Asa chegou um dia em casa, no sítio Cajarana, em Altinho, Agreste, e chocou todo mundo quando disse: vou entrar na universidade.

Outra afronta: diferente dos irmãos, que terminaram no máximo o ensino médio, ele não iria mais trabalhar em São Paulo.

O enredo meio previsível reservado para os nordestinos pobres do interior até tentou demovê-lo da ideia, mas os jovens de hoje resolveram que no destino não é só Deus quem manda. Asa tinha seis anos quando o pai foi assassinado e a mãe passou a dar conta de tudo. Quando estava na quinta série, se apaixonou pela escrita por conta de um professor que ensinava português usando música dos Titãs e da Legião Urbana (outro absurdo, logo rock, coisa satânica e que induz às drogas, dentro de sala de aula).

Sabotagem às empresas do país

Quando quis estudar ainda mais, Asa bateu cara e corpo no boleto da universidade privada: não havia ainda ensino público superior na sua região. Foi para São Paulo desenganado trabalhar como operador de call center — agora sim, era um destino compatível com seu histórico de vida.

Poderia muito bem ter se aquietado, mas, atrevido, se enfiou em um grupo de estudos na USP (Universidade de São Paulo). Voltou oito anos depois para Altinho e viu um outdoor da novidade: a UFPE estava chegando a Caruaru. Decidiu voltar para o sítio em 2010 e fez o Enem. Não conseguiu entrar. Até começou a cursar jornalismo em uma universidade particular, mas, com os Titãs e Renato Russo na cabeça, repetiu o exame em 2014. Passou, está terminando o curso e agora influencia toda a família com sua trajetória.

Que azar do call center. É preciso pensar: como ficam as empresas que pagam baixos salários desse país?

Construção é coisa para homem!

A baderna não acaba aqui: tem Violeta, 23 anos, garota parda, moradora da área rural de Caruaru, o pai agricultor que já trabalhou como servente de pedreiro e vendendo material de construção, a mãe dona de casa que já foi babá.

A menina foi criada em um ambiente que podemos considerar um pouco suspeito, vejam só: o pai, que gosta de cantar, tocar violão, baixo, guitarra e triângulo, estimulou a filha a ler revista de material de construção (certeza que a ministra Damares diria que isso é coisa de homem) e a cantar. Aí era um tal de Zezé de Camargo e Luciano pra lá, Kid Abelha e Djavan pra cá. Resultado: Violeta está no 8º período do curso de Medicina.

Conseguiu entrar depois de passar por etapas como um pré-vestibular gratuito chamado Superação, oferecido por voluntários no próprio Centro Acadêmico do Agreste. Tentou medicina duas vezes, não passou, entrou em engenharia civil e aí as leituras das revistas sobre cimento e argamassa que o pai lhe dava fizeram sentido.

Mas houve uma terceira tentativa no curso sonhado e Violeta — menina atrevida — passou. Consegue se manter no curso graças a um auxílio do governo federal e teme que os tantos cortes na área atrapalhem sua conquista. Hoje, o pai sai pela rua contando que sua primeira filha daqui a pouco vai ser doutora. Médica, do interior de Pernambuco, e preta. É muita inversão de padrões nesse país.

Influência comunista

Violeta é colega de cor e de curso de Genival, que esses dias, antes da pandemia, era visto vendendo doce de leite (R$ 2,50 a unidade) nas dependências da UFPE.

Veio lá da Lage do Carrapicho, área rural de Alagoinha, agreste de Pernambuco. Era outro "pé descalço", como os mais velhos da região chamam aqueles que nasceram em berço de pobreza: aprendeu matemática trabalhando com o pai e a mãe na plantação de feijão, milho e mandioca, vendendo leite de vaca. Aprendeu também a gostar de biologia e anatomia observando as cobras, as galinhas, as vacas e os passarinhos. Um dia, um professor prestou atenção no menino curioso e falou de um vestibular em uma cidade vizinha.

Sabia que Genival era dessa gente meio estranha que gosta de livro e que o rapaz tinha hábito de frequentar biblioteca, ler as obras de Graciliano Ramos, aquele perigosíssimo comunista (dica ao ministro Guedes: taxar primeiramente os livros desse pessoal).

Genival, sem dinheiro, conseguiu fazer o vestibular sem pagar taxa de inscrição e entrou em licenciatura em física, o que fez o pai, preocupado com o pouco dinheiro que a família estava recebendo, desistir da ideia de ir para o Sudeste.

Em 2014, auxiliou, na própria cidade, uma médica cubana que percebeu seu talento e o incentivou a tentar o curso de medicina (ainda bem que esse pessoal que atendia a população nas zonas rurais já foi embora, o risco de influenciarem mais gente era enorme). Prestou vestibular para as universidades federais de Caruaru e Campina Grande e, somando macaxeira, feijão e litro de leite, passou nas duas.

Agora, em vez de pensar em um grande consultório com atendimento privado, empreender na área médica, aparece com uns pensamentos meio socialistas: quer voltar para a cidade para atender a população de Alagoinhas, diz que quer devolver o que aprendeu. Vende os doces justamente para bancar os custos do curso. E ainda ajuda a família. Mas dividindo tudo o que tem, como vai se tornar uma pessoa de sucesso?

Bem, é isso. Os relatos sobre os absurdos que ando acompanhando na universidade terminam aqui, mas há mais, muito mais. Ensino superior gratuito no interior ainda vai inverter a lógica de nossos passaportes e terminar com filha de empregada doméstica e agricultor querendo viajar para fazer turismo ou estudar no exterior.

Filho de pobre virando doutora e doutor pode mudar a estrutura desse país. Tem que ver isso aí.

* Os relatos foram extraídos da dissertação "Trajetórias escolares de estudantes de origem socioeconômica desfavorecida: o acesso e a permanência no ensino superior público", de Danillo Gouveia, orientado pela docente Carla Acioli Lins (PPGDUC/UFPE)

* O CAA foi fundado em 2006 e é o primeiro centro da UFPE a ser interiorizado (depois, veio o de Vitória de Santo Antão). Ambos fizeram parte do Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). O propósito do programa era ampliar o acesso e permanência dos estudantes na educação superior também nas áreas interioranas do Brasil.

* No país, segundo o Censo da Educação Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 8,45 milhões de pessoas cursam algum curso de graduação da educação superior. É um número 44,6% maior do que há 10 anos. Mas a maioria das matrículas, 6,37 milhões, está concentrada em 2.238 instituições de ensino privadas. Apenas 2,08 milhões de matrículas estão nas 299 instituições públicas. Os dados se referem ao ano de 2018.

* Relatório elaborado por um grupo de pesquisadores brasileiros e publicado neste mês pelo instituto GPPi (Global Public Policy Institute), baseado em Berlim, aponta sérios riscos à liberdade acadêmica no Brasil.