"Bicha, a senhora é destruidora mesmo" ou: lacrar é um movimento político
A oratória contagiante do advogado no tribunal, o sermão poderoso do padre no púlpito, o discurso enérgico do político no palanque. Crescemos ouvindo, aplaudindo e torcendo por falas públicas de homens encantadores e donos de uma comunicação ímpar. Esses líderes nos arrebatam com suas formas contundentes de se expressar, nas quais apenas razão e argumento não sustentam a língua: é preciso o azeite da emoção. Reparem que há uma coisa em comum — além do gênero — entre todos esses rapazes magníficos: o humano desejo de lacrar.
Calma: não estou colando o símbolo do Twitter na testa de seus amados Napoleão, Demóstenes, Cícero, Steve Jobs, Churchill ou Barack Obama, alguns dos que surgem como notórios na prática discursiva. Mas eles são bons exemplos de importantes questões escondidas sob as críticas geralmente rasas de quem aponta a "cultura do lacre" como expressão mais recente de nossa incivilização.
Primeiro: o direito da fala nos espaços públicos é entendido, ainda, como coisa de homem — e homem hétero. Essa percepção tem relação direta com os primórdios dos debates abertos na sociedade ocidental, quando a ágora (= lugar de reunião), na Grécia Antiga, era o espaço maior da cidadania.
Essa ideia de "cidadania" tem relação próxima com aquela vista hoje: enquanto, entre os gregos antigos, mulheres e pessoas escravizadas não podiam participar do debate, apesar de serem a maioria da população, entre nós seguimos com espaços de poder quase refratários às presenças daqueles que o cientista social Richard Santos chama de maiorias minorizadas.
Quer um exemplo? Tome o último censo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a magistratura brasileira, este espaço no qual a retórica bomba mais que Anitta e Pablo Vittar.
A pesquisa demonstra que entre juízes e juízas apenas 37% são mulheres, enquanto 80,3% são brancos. O censo é de 2018.
Arrepiando a peruca de Rousseau
Segundo: vale jogar mais um pouquinho de tempero histórico na discussão e trazer um grupo identitário fortíssimo e babadeiro: aquele formado pelos iluministas.
Inspirados em Descartes, Spinoza e Francis Bacon, rapazes como Diderot, Kant e Rousseau gastaram, cada um a seu modo, muita saliva discutindo que o mundo precisava ser regido não por ideias e ideais religiosos, e sim por razão e esclarecimento. Bons de raciocínio e com as luzes — desculpem o trocadilho — sobre suas cabeças, terminaram influenciando estruturalmente nossa moderna forma de ver, pensar e conhecer. Estavam certos os rapazes? Em boa medida, sim.
Mas a questão é que o McCombo liberdade, igualdade e fraternidade não previa uma vasta parcela da população, incluindo parte da europeia. Vale lembrar que homem era o bicho da rua, do espaço público; mulher, o bicho da casa, do ambiente privado.
Também é bom situar que o ideal libertário não compreendia em nenhum momento as milhões de pessoas traficadas entre África, Europa e suas colônias. E estamos falando do século 18, quando a atividade escravista foi mais intensa. Foi a Revolução Haitiana (1791) aquela que articulou em parte a questão cor/raça a um debate que o Iluminismo esqueceu.
Como esses brevíssimos exemplos demonstram, a articulação voz e palco, fala e atenção, poder e plateia, não foi e nem é algo fácil para uma maioria silenciada.
Progressistas também torcem o nariz
Esta, hoje, vai encontrar na internet e mais especificamente nas redes sociais um espaço para difundir suas opiniões — ou melhor, seus posicionamentos políticos. É aí que começa a briga sangrenta, a disputa pela fala, as batalhas travadas no textão ou em um mínimo de caracteres. E dá-lhe VRÁ, e dá-lhe gritos de "perfeita!", "zero defeitos", "bicha, a senhora é destruidora mesmo" ou o já histórico "lacrou!".
Do outro lado do ringue, as análises supostamente "equilibradas" tentam ajeitar os fios arrepiados das perucas de Rousseau e seus seguidores, todos PAS-SA-DOS com um debate cheio de gente que nunca viram mais gordas em suas ágoras. Essas novas vozes vão provocar desordem no arranjo histórico sobre quem pode falar e quem deve permanecer apenas ouvindo.
É claro que isso gera muita grita, inclusive de gente que se achava superprogressista — mas que reage mal quando sente aquela batidinha no ombro e escuta um "dá licença?".
"As novas tecnologias de informação e comunicação propiciam o aparecimento de um novo espaço público — a ágora virtual — em que novos discursos e sujeitos emergem para superar parte da exclusão política", escreve o advogado Marcelo dos Santos. Ele completa: a internet possibilita "dar voz a quem antes era mudo, visão a quem era cego e ouvidos a quem não ouvia, por ignorância ou seletividade, às críticas de outrem".
Nesse contexto, a lacração vai surgir como uma forma política de expressão fortemente associada a grupos que estavam ali, deixados de ladinho das discussões, trazidos só às vezes para servir de exemplo, de plateia, de objeto de estudo.
A linha de frente dos lacradores
Os movimentos heterogêneos LGBTQI+ são os espaços nos quais o lacre vai surgir com uma força que logo será disseminada nas tentaculares estruturas virtuais — em 2016, ficou famosa a Benção do Lacre, de Liniker.
Logo, gays, lésbicas, transexuais, queers e também negras e negros passaram para a linha de frente como "lacradores" maiores e entraram na mira, não exatamente por estarem realizando alguma fala-performance, mas muitas vezes pelo simples fato de se contraporem ao corolário de ideias conservadoras que se institucionalizaram ainda mais no Brasil.
Assim, não deixa de ser bem interessante e mesmo engraçado que boa parte dos ataques contra estes grupos seja feito justamente por pessoas que elegeram um presidente sob os gritos de "mito!", o cara que passou parte da campanha reduzindo sua plataforma política ao gesto de "arminhas", "mitando" (lacrando?) e gritando frases menores que os 280 caracteres permitidos em uma tuitada.
Na real, as empreitadas de Bolsonaro e seus fãs — incluindo os da av. Faria Lima — são a atualização das práticas sofistas famosas na antiga Grécia para o WhatsApp. Entre os sofistas, o importante era o convencimento de um fato, mesmo que ele não fosse verídico.
A gente nem precisa falar de cloroquina aqui, precisa?
Lacrar é o que resta
O músico e compositor Negro Leo, que lançou recentemente o trabalho Desejo de Lacrar vai na mosca quando percebe que é justamente a claque conservadora aquela que vai instrumentalizar o discurso do lacre a seu favor a partir dos protestos de 2013. Ela, diz o músico, basicamente se comunica através do logos lacrador que tanto critica. Mas há uma profunda diferença entre o lacre que quer conservar calada a maioria minorizada e o lacre que quer garantir às pessoas mais espaço.
Em entrevistas sobre o trabalho, Negro Leo sintetiza: "lacrar é agir de forma insolente e revoltada. Vencer, se não de fato, virtualmente. Lacrar, na verdade, é o que nos resta."
Essas porradas discursivas emitidas em brevíssimas falas são vistas positivamente por Erico Andrade, mas ele chama atenção para seus limites. "A brevidade desses comentários permite que uma forma de atuação política possa emergir a partir do momento em que marca uma posição por meio da lacração. Lacrar é ato que está ligado à capacidade de concisão, de argumento. Ele passa também pela lógica das redes sociais, onde a fala precisa ser concisa. Mas não necessariamente fomenta o debate público no que diz respeito a um diálogo entre diferentes posições."
Nesse sentido, o lacre pode se mostrar insuficiente para propagar a conversa, que, lembra Erico, não almeja propriamente o consenso. É, assim, necessário que o lacre se coletivize, que não se resuma ao seu tom individual (algo que já acontece, embora seja ignorado pelo pessoal da peruca arrepiada).
Mais: o fenômeno, apesar de ser entronizado nas redes, reproduz na verdade aquilo que acontece na esfera do real e o modo como nos relacionamos nela. É investindo em uma educação plural e consistente que de fato talhamos horizontes mais interessantes para o debate, nas ágoras "reais" ou virtuais.
Convidemos então para um chá ou um copo de catuaba os Grandes Homens, togados, de ternos, camisas polo, batinas, jalecos, para praticar com esses novos rostos aquela retórica com o azeite que eles não confessam mas sempre adoraram: O VRÁ!, agora atomizado no ato histórico da lacração.
* Drops: a pesquisadora Valdisnéia Lucia de Sousa, da Universidade Federal do Piauí (UFPI) realizou um estudo sobre língua e lacração no qual entrevistou 22 alunos e alunas do 3º ano do ensino médio de uma escola pública da cidade de Sussuapara, sul do Estado.
Dos jovens entre 16 e 21 anos, dezenove deles vivendo no ambiente rural, o sentido primeiro de lacrar (fechar, selar) já é substituído por outro, o que sugere autoestima, poder e segurança. Nas respostas enviadas para a pesquisadora sobre o sentido do que é lacrar, não foi difícil encontrar empregos como "bicha, a senhora lacrou"; "modéstia à parte, lacrei na pista de dança"; e "amiga, você lacrou com esse look." O lacre também é rural, bitches.
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