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Felipe Moura Brasil

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Jair Bolsonaro é a cortina de fumaça do sistema

Colunista do UOL

10/08/2021 04h08

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Em 2019, Jair Bolsonaro indicou os emedebistas Fernando Bezerra Coelho e Eduardo Gomes para as lideranças do governo no Senado e no Congresso, respectivamente, além de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, mas foi em maio de 2020 que começou a entregar o Brasil ao Centrão, quando o deputado federal Arthur Lira, do PP, indicou Fernando Marcondes para comandar o Dnocs - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, ligado ao Ministério do Desenvolvimento Regional.

No mês seguinte, o senador Ciro Nogueira, também do PP, indicou seu próprio advogado, Maxwell Vieira, para comandar o Departamento de Projetos de Mobilidade e Serviços, outro setor da mesma pasta, chefiada por Rogério Marinho.

Ainda em junho de 2020, Bolsonaro recriou o Ministério das Comunicações para acomodar o deputado federal do Centrão e genro de Silvio Santos, Fábio Faria, do PSD.

Dois meses depois, em agosto, Bolsonaro indicou o delatado Ricardo Barros, do PP, para a liderança do governo na Câmara.

Em setembro de 2020, publiquei o artigo "Dom Bolsonaro Del Centrão", aplicando os conceitos de primeira e segunda realidades, usados pelo filósofo Eric Voegelin em sua análise do totalitarismo à luz de Dom Quixote. O bolsonarismo tentava manter o povo na segunda realidade - a das fantasias -, enquanto, na primeira, o presidente cometia estelionatos eleitorais em série, entre eles a entrega do Brasil ao Centrão.

Dias depois, ainda em setembro, a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo - número 2 de Augusto Aras - desistiu de uma denúncia oferecida pela própria PGR contra Arthur Lira e pediu ao STF que a rejeitasse. Lira era acusado de ter recebido propina de R$ 1,6 milhão da empreiteira Queiroz Galvão.

Em outubro, Bolsonaro confirmou a indicação de Kássio Nunes Marques ao STF, defendida desde 2019 por Ciro Nogueira - alvo, assim como Lira, do inquérito do "quadrilhão do PP" que o novo ministro da Corte ajudaria a arquivar em junho de 2021, juntando-se a Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Em fevereiro de 2021, com apoio de Bolsonaro, Lira foi eleito presidente da Câmara em primeiro turno, conquistando 302 votos.

Cinco meses depois, em julho, Bolsonaro nomeou Ciro Nogueira ministro-chefe da Casa Civil e proferiu a frase confessional "eu sou do Centrão", contrariando discursos de campanha dele ("nós não integramos o Centrão"), do filho Eduardo ("se vocês vão se deixar seduzir por discurso do Centrão ou se vão se manter firme e forte Bolsonaro") e do general Augusto Heleno ("se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão").

Alvo de cinco investigações em curso, duas das quais já renderam denúncias, Ciro Nogueira considerou sua própria nomeação "o passo mais importante" que Bolsonaro deu "em nome da estabilidade". Em sua posse, o ministro acusado de receber propina de 7,3 milhões de reais da Odebrecht em troca de apoio no Congresso se classificou como um "amortecedor" das relações entre os poderes Legislativo e Judiciário. "Meu nome é temperança e meu sobrenome tem que ser equilíbrio", declarou.

Como Bolsonaro insistiu em condicionar a realização da eleição de 2022 à aprovação do voto impresso e ainda atacou o ministro do STF e presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, com ofensas e mentiras, Arthur Lira fez um alerta virtual: "Não contem comigo em qualquer movimento que rompa ou macule com a independência e a harmonia entre os poderes." O presidente da Câmara, condenado em duas ações por improbidade administrativa, defendeu, também, uma "convivência civilizada e sempre democrática". Mencionou até os nomes de Aristóteles, Locke e Montesquieu, embora sem qualquer citação específica.

O Centrão está radiante, claro.

Enquanto Bolsonaro distrai o povo com suas batalhas contra moinhos de vento, parlamentares penetram nas vísceras do Estado brasileiro, passam a boiada bilionária do "orçamento secreto" (vulgo "tratoraço"), da "emenda cheque em branco" e do fundão eleitoral, alteram em causa própria as leis de combate à corrupção e à improbidade administrativa (com adesões e sanções bolsonaristas), propõem a legalização da compra de votos, e ainda posam de defensores da moderação e da democracia.

Às vezes, eles encontram um ou outro contratempo, como a descoberta da Controladoria-Geral da União de sobrepreço em caixas d'água no Dnocs e em compras de tratores no MDR (sem falar no indiciamento de Bezerra Coelho por propinas passadas e na apuração da CPI da Pandemia sobre Barros); mas nada assim que resulte em nova denúncia da PGR bolsonarista, muito menos em condenação no STF - um tribunal tão solidário aos padrinhos e amigos dos ministros que Bolsonaro e seu filho denunciado Flávio buscaram aliança, café e pizza com Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

De um lado, o presidente empregou aliados dessa dupla (como André Mendonça e José Levi), fez pressão contra a CPI da Lava Toga, apagou do Twitter sua defesa da prisão em segunda instância, sancionou restrições à prisão preventiva e à delação premiada, e avalizou o desmantelamento de forças-tarefa anticorrupção, ajudando a demonizar seus expoentes. Do outro, Toffoli e Gilmar se empenharam em derrubar a prisão em segunda instância, adiar decisões sobre foro privilegiado, fazer pedidos de vista, impor uma ordem de alegações finais, usar provas ilícitas não autenticadas como "reforços argumentativos", e transferir casos avançados para a Justiça Eleitoral e para a Justiça de Brasília. Já quando Bolsonaro insinua um golpe militar, Gilmar descarta: "Tendo a pensar que a democracia está solidificada. Temos tido esses arroubos ao longo desses períodos, mas as respostas institucionais têm prevalecido."

A frente ampla pela impunidade une a família Bolsonaro, Lula, outros petistas, velhos tucanos, o Centrão e alas de tribunais superiores e da imprensa, mas ataques ostensivos e caricaturais ao processo democrático, não. Por isso, Dom Bolsonaro, o presidente que mais paga emendas ao Congresso (41,1 bilhões de reais) e o que menos aprova projetos (83), é a cortina de fumaça ideal da velha política e de seus protetores. Porque, quixotesco, ele ataca, por fora, o sistema que ele próprio fortalece por dentro.