Topo

Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Gilmar, o guardião do sistema, contra Moro e Dallagnol

Ministro do STF Gilmar Mendes - Felipe Sampaio/STF
Ministro do STF Gilmar Mendes Imagem: Felipe Sampaio/STF

Colunista do UOL

07/11/2021 18h05

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

As reações às pré-candidaturas de Sergio Moro e Deltan Dallagnol evidenciam ainda mais a segunda e a terceira etapas da vingança do sistema, descritas pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, quando votou contra a suspeição do ex-juiz da Lava Jato em Curitiba, citando os desdobramentos italianos da Operação Mãos Limpas:

"Quem acompanhou o que aconteceu na Itália conhece o filme da reação da corrupção:

  1. A mudança na legislação ou jurisprudência;
  1. A demonização de procuradores e juízes; e
  1. A tentativa de sequestro da narrativa e de cooptação da imprensa para mudar os fatos e recontar a história.

Na Itália, a corrupção venceu e conquistou a impunidade. (…) Aqui entre nós, ela quer mais: ela quer vingança; quer ir atrás dos procuradores e dos juízes que ousaram enfrentá-la, para que ninguém nunca mais tenha a coragem de fazê-lo.

No Brasil, hoje, nós temos os que não querem ser punidos, o que é um sentimento humano e compreensível. Mas temos um lote muito pior: o dos que não querem ficar honestos nem daqui para frente e gostariam que tudo continuasse como sempre foi."

Gilmar Mendes - Senado - Senado
Gilmar Mendes e Sergio Moro
Imagem: Senado

Indicado ao STF pelo tucano FHC, Gilmar Mendes liderou no Brasil as três etapas de reação do sistema a operações anticorrupção:

1) Defendeu jabutis inseridos no pacote anticrime (juiz de garantias e restrições à prisão preventiva e à delação premiada), na Lei de Abuso de Autoridade e na Lei de Improbidade Administrativa. No caso da lei de abuso, Gilmar foi gravado em conversa telefônica na qual seu amigo investigado Aécio Neves lhe pediu para pressionar outro senador a votar conforme seu desejo, o que o ministro do STF se prontificou a garantir que faria. No caso da improbidade, Gilmar se antecipou à alteração da lei, suspendendo dispositivos antigos. E a PEC da Vingança contra o Ministério Público ainda ganhou o apelido de 'PEC do Gilmar'.

Além disso, sua mudança de posição sobre a prisão em segunda instância foi decisiva para alterar a jurisprudência do Supremo e abrir as portas da cadeia a condenados como o velho tucano Eduardo Azeredo e os petistas José Dirceu e Lula. Gilmar havia votado a favor da medida em 2016, na esteira de seus próprios elogios à Lava Jato e de sua decisão de suspender a nomeação de Lula como ministro do governo de Dilma Rousseff, impedindo-o de obter foro privilegiado. Mas alterou seu voto depois que a força-tarefa atingiu, entre outros, seus amigos Aécio Neves, José Serra, Aloysio Nunes e Michel Temer.

Foi quando Gilmar virou um aliado do PT, como chegou a confessar em vídeo o petista Wadih Damous, suplente de deputado federal que Lula tornou titular para defendê-lo na Câmara durante a CPI da Petrobras.

Foi quando, também, amigos de Gilmar e de velhos tucanos na imprensa, elogiosos como ele até 2016, passaram a demonizar a Lava Jato e a absorver a audiência lulista, tornando-se indistinguíveis em relação a porta-vozes e "ex"-assessores de Lula. A oferta da vaga de candidato a vice-presidente na chapa do ex-presidiário ao tucano Geraldo Alckmin, denunciado por corrupção pela força-tarefa de São Paulo, ilustra o arrefecimento dos ranços entre o lulismo e o velho tucanato, do qual Eduardo Leite e João Doria buscam (e precisam) se distinguir.

2) Em entrevistas e julgamentos, Gilmar demonizou a Lava Jato e seus membros de tal maneira que até a Justiça já condenou a União pelas ofensas proferidas pelo ministro contra Deltan Dallagnol.

Agora que Moro e Dallagnol são vistos como pré-candidatos à presidência e ao Congresso (já que o ex-juiz se filia ao Podemos em 10 de novembro e lança em 2 de dezembro o livro Contra o sistema da corrupção; e o ex-procurador deixou o MPF, dizendo que "os nossos instrumentos de trabalho para alcançar a Justiça vêm sendo enfraquecidos, destruídos"), Gilmar também reagiu no Twitter.

3) "Demonizou-se o poder para apoderar-se dele", disparou o ministro, jactando-se, como também faz sua claque, de alertar "há alguns anos para a politização da persecução penal". Investigar e mandar prender quem, em troca da liberação de contratos públicos pelo seu grupo político, recebe suborno de empresários (seja em espécie, seja sob a forma de reserva e customização de imóveis, incluindo mansões de veraneio na praia e no campo) não é "demonizar o poder". É cumprir as leis. Tanto que o sistema precisou mudar a legislação e a jurisprudência para se blindar. Demonizar é pintar alguém de demônio com narrativas genéricas que falsificam seus atos específicos, ou com ilações sobre conteúdos não autenticados de provas ilícitas, obtidas por meios criminosos.

Interlocutor de investigados em telefonemas e reuniões fora da agenda oficial, consultor de propostas legislativas de interesse deles, protetor dos velhos tucanos no STF e, por tabela, guardião do sistema, Gilmar fez e segue fazendo política de toga e caneta na mão, mas acusa retroativamente de "politização" aqueles que deixaram cargos e estabilidades para se arriscarem em um processo eleitoral, após a destruição dos instrumentos de combate à corrupção no país.

Ninguém precisa idolatrar Moro e Dallagnol para entender que a tentativa de sequestro da narrativa - turbinada por alas da imprensa não apenas cooptadas, mas muito mais íntimas dos poderosos do que convém ao exercício do jornalismo - tem, como objetivo, recontar a história e, como causa, o pavor de deixar o sistema exposto à infiltração de potenciais combatentes de seus vícios.

"A receita estava pronta", concluiu Gilmar.

De fato, Barroso já a havia publicado.